Adão e os Dois Cérebros
No princípio,
Adão pensava com o alto
e sentia com o infinito.
Dois cérebros pulsavam em silêncio,
um para Deus,
outro para o mundo.
Num via o todo
como se fosse seu corpo,
no outro,
o corpo
como se fosse o todo.
Não havia separação
entre o nome e a coisa,
nem entre o verbo
e a árvore que o sussurrava.
Mas veio a dúvida,
vestida de desejo,
e soprou-lhe a promessa
de um saber que divide.
Mordeu o fruto
e um dos cérebros
encerrou-se no crânio.
O outro,
escondeu-se nas entrelinhas do espírito
e só canta
quando o coração se cala.
Desde então,
vivemos com um
e sonhamos com dois.
Pensamos em linhas,
mas lembramos em círculos,
erguemos torres,
mas ansiamos pelo Jardim.
E às vezes,
no silêncio entre dois pensamentos,
ou num sonho que não é nosso,
algo desperta,
e por um instante
voltamos a ver
como Adão via,
antes da queda.
Eva: O Espelho da Unidade Perdida
Antes da palavra mulher, Eva era reflexo no coração de Adão, não separada,
mas contida.
Não nasceu da carne, mas da consciência que ousou ver-se ao espelho.
Foi quando Adão se viu n’Eva que soube que era dois e que nunca mais seria
um só.
Eva não caiu, despertou.
Trouxe à luz o reverso do paraíso: o tempo, o sangue, a escolha, o desejo
de conhecer o que está para lá do eterno repouso.
Ela é o princípio do espanto, o primeiro nome dado ao amor quando este
soube que podia perder-se.
E por isso carrega o peso da terra, o ciclo das dores e das sementes, o eco
de uma origem que já só se lembra em sonhos.
Mas em cada toque, em cada ventre,
em cada palavra que acolhe e transforma,
Eva volta a juntar o que foi separado,
recolhe fragmentos do Uno
e tece com eles o tecido do retorno.
Não é a queda o que representa, mas a coragem de sair do jardim
para aprender a amar
sem garantias.
Porque só quem já foi inteiro
e aceitou rasgar-se,
é capaz de reencontrar
a unidade verdadeira.
A Serpente: Voz do Tempo
Não rasteja por maldade,
nem fala por engano.
A serpente é anterior ao verbo,
é o sussurro da mudança
no coração do eterno.
Foi ela que ouviu o silêncio de Deus
e ousou traduzi-lo
numa pergunta.
“E se souberem?”
“E se caírem para aprender a subir?”
Não trouxe o fruto,
trouxe a escolha,
não impôs a queda,
acendeu o caminho.
A sua língua bifurcada
não mente,
aponta dois lados da verdade
que só os cegos chamam de traição.
Ela não seduz Eva,
reconhece-lhe a sede.
Sabe que o paraíso
sem liberdade
é só uma cela perfumada.
Por isso fala baixo,
entre folhas e presságios,
sabendo que só os inquietos
a ouvirão.
E por cada palavra que o medo queimou,
há um sopro de serpente
a germinar na alma
de quem ousa perder o céu
para encontrar a si mesmo.
Anjo à Porta do Éden
Não foi castigo,
foi limite.
O anjo com espada de fogo
não guardava a culpa,
guardava o portal.
Não era raiva,
era compaixão severa,
como quem diz:
“Volta quando fores inteiro,
quando souberes
ver a árvore sem a querer possuir.”
Eva olhou-o nos olhos,
e não viu ódio,
Adão baixou o rosto,
e não viu nada.
Desde então,
buscamos jardins
em cidades e promessas,
mas o caminho de volta
não é reto,
é espiral.
O anjo não se move,
mas a chama muda,
não impede,
espera.
E quando o segundo cérebro acordar,
quando o coração deixar de medir,
quando o verbo voltar a ser semente,
talvez a espada se apague
e o portão
não seja mais preciso.
Sem comentários:
Enviar um comentário