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quinta-feira, 24 de julho de 2025

Jardim e o Silêncio / J.M.J.

Adão e os Dois Cérebros

 

No princípio,

Adão pensava com o alto

e sentia com o infinito.

Dois cérebros pulsavam em silêncio,

um para Deus,

outro para o mundo.

 

Num via o todo

como se fosse seu corpo,

no outro,

o corpo

como se fosse o todo.

 

Não havia separação

entre o nome e a coisa,

nem entre o verbo

e a árvore que o sussurrava.

 

Mas veio a dúvida,

vestida de desejo,

e soprou-lhe a promessa

de um saber que divide.

 

Mordeu o fruto

e um dos cérebros

encerrou-se no crânio.

 

O outro,

escondeu-se nas entrelinhas do espírito

e só canta

quando o coração se cala.

 

Desde então,

vivemos com um

e sonhamos com dois.

 

Pensamos em linhas,

mas lembramos em círculos,

erguemos torres,

mas ansiamos pelo Jardim.

 

E às vezes,

no silêncio entre dois pensamentos,

ou num sonho que não é nosso,

algo desperta,

e por um instante

voltamos a ver

como Adão via,

antes da queda.

 

 

 

 

 

Eva: O Espelho da Unidade Perdida

 

Antes da palavra mulher, Eva era reflexo no coração de Adão, não separada, mas contida.

 

Não nasceu da carne, mas da consciência que ousou ver-se ao espelho.

 

Foi quando Adão se viu n’Eva que soube que era dois e que nunca mais seria um só.

 

Eva não caiu, despertou.

 

Trouxe à luz o reverso do paraíso: o tempo, o sangue, a escolha, o desejo de conhecer o que está para lá do eterno repouso.

 

Ela é o princípio do espanto, o primeiro nome dado ao amor quando este soube que podia perder-se.

 

E por isso carrega o peso da terra, o ciclo das dores e das sementes, o eco de uma origem que já só se lembra em sonhos.

 

Mas em cada toque, em cada ventre,

em cada palavra que acolhe e transforma,

Eva volta a juntar o que foi separado,

recolhe fragmentos do Uno

e tece com eles o tecido do retorno.

 

Não é a queda o que representa, mas a coragem de sair do jardim

para aprender a amar

sem garantias.

 

Porque só quem já foi inteiro

e aceitou rasgar-se,

é capaz de reencontrar

a unidade verdadeira.

 

 

 

 

 

A Serpente: Voz do Tempo

 

Não rasteja por maldade,

nem fala por engano.

A serpente é anterior ao verbo,

é o sussurro da mudança

no coração do eterno.

 

Foi ela que ouviu o silêncio de Deus

e ousou traduzi-lo

numa pergunta.

 

“E se souberem?”

“E se caírem para aprender a subir?”

 

Não trouxe o fruto,

trouxe a escolha,

não impôs a queda,

acendeu o caminho.

 

A sua língua bifurcada

não mente,

aponta dois lados da verdade

que só os cegos chamam de traição.

 

Ela não seduz Eva,

reconhece-lhe a sede.

Sabe que o paraíso

sem liberdade

é só uma cela perfumada.

 

Por isso fala baixo,

entre folhas e presságios,

sabendo que só os inquietos

a ouvirão.

 

E por cada palavra que o medo queimou,

há um sopro de serpente

a germinar na alma

de quem ousa perder o céu

para encontrar a si mesmo.

 

 

 

 

 

Anjo à Porta do Éden

 

Não foi castigo,

foi limite.

O anjo com espada de fogo

não guardava a culpa,

guardava o portal.

 

Não era raiva,

era compaixão severa,

como quem diz:

“Volta quando fores inteiro,

quando souberes

ver a árvore sem a querer possuir.”

 

Eva olhou-o nos olhos,

e não viu ódio,

Adão baixou o rosto,

e não viu nada.

 

Desde então,

buscamos jardins

em cidades e promessas,

mas o caminho de volta

não é reto,

é espiral.

 

O anjo não se move,

mas a chama muda,

não impede,

espera.

 

E quando o segundo cérebro acordar,

quando o coração deixar de medir,

quando o verbo voltar a ser semente,

talvez a espada se apague

e o portão

não seja mais preciso.

 

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