Há dores que não curam,
apenas se organizam.
Vestem farda, sobem ao parlamento,
lembram o mundo
que já foram vítimas,
e com isso ganham o direito de calar
as vítimas de agora.
Israel nasceu da ferida.
Não é metáfora,
nasceu mesmo do sangue,
das cinzas dos fornos,
das listas de nomes riscados
em campos sem céu.
Mas há feridas que,
quando não são curadas com verdade,
endurecem
e tornam-se muro.
E, de muro em muro,
levantou-se um Estado
onde o medo manda
e a dor é monumento intocável.
Pelo trauma, ensinaram às crianças
que o mundo odeia o seu nome,
que só a força os protege.
Que nunca mais Auschwitz,
mesmo que isso signifique fazer de Gaza
um gueto sem saída.
Mas há uma verdade antiga:
quem não cura a sua dor, repete-a nos outros.
E agora, os netos da Shoá
apontam canhões a berços,
e a dor de ontem serve de escudo
para o massacre de hoje.
Não há desculpa sagrada
para matar crianças.
Não há memória
que justifique o apagamento do outro.
A cada bomba,
arde também a dignidade da História.
A cada silêncio cúmplice,
renova-se a tragédia,
mas agora com o nome trocado.
E a ferida,
que podia ser lição,
volta a ser arma.
Israel,
a tua dor não te absolve,
não te dá salvo-conduto para o extermínio.
Pelo contrário,
dá-te mais responsabilidade,
mais urgência em saber
quando parar.
Porque quem conheceu o inferno
não devia acendê-lo de novo
nos quintais dos outros.
(Este poema aborda a dolorosa contradição entre uma memória coletiva
construída a partir do sofrimento, a Shoá (termo hebraico para o Holocausto), e
o silêncio ou cumplicidade diante de um novo sofrimento alheio. A Shoá não é
apenas um evento histórico: é uma ferida identitária profunda do povo judeu,
marcada por perseguições, campos de extermínio e a tentativa sistemática de
apagar uma cultura e um povo.
Contudo, quando essa memória não é acompanhada por reflexão crítica e
empatia, pode tornar-se muro, justificativa ou até escudo ideológico para novas
formas de opressão. Este poema não questiona o direito à existência de Israel,
mas alerta para o risco de que a dor não curada, ou mal interpretada, leve
à repetição de lógicas de exclusão e violência.
Relembra que sofrimento passado não legitima sofrimento presente, e que
nenhuma identidade coletiva deve ser construída à custa da dignidade de outro
povo. Gaza não é Auschwitz, mas o esquecimento da humanidade comum poderá fazer
nascer novos infernos.)
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