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domingo, 27 de julho de 2025

Ferida Que Aprende a Matar (poema sobre a memória que deixou de ser bússola) / J.M.J.

Há dores que não curam,

apenas se organizam.

Vestem farda, sobem ao parlamento,

lembram o mundo

que já foram vítimas,

e com isso ganham o direito de calar

as vítimas de agora.

 

Israel nasceu da ferida.

Não é metáfora,

nasceu mesmo do sangue,

das cinzas dos fornos,

das listas de nomes riscados

em campos sem céu.

 

Mas há feridas que,

quando não são curadas com verdade,

endurecem

e tornam-se muro.

 

E, de muro em muro,

levantou-se um Estado

onde o medo manda

e a dor é monumento intocável.

 

Pelo trauma, ensinaram às crianças

que o mundo odeia o seu nome,

que só a força os protege.

Que nunca mais Auschwitz,

mesmo que isso signifique fazer de Gaza

um gueto sem saída.

 

Mas há uma verdade antiga:

quem não cura a sua dor, repete-a nos outros.

E agora, os netos da Shoá

apontam canhões a berços,

e a dor de ontem serve de escudo

para o massacre de hoje.

 

Não há desculpa sagrada

para matar crianças.

 

Não há memória

que justifique o apagamento do outro.

 

A cada bomba,

arde também a dignidade da História.

A cada silêncio cúmplice,

renova-se a tragédia,

mas agora com o nome trocado.

 

E a ferida,

que podia ser lição,

volta a ser arma.

 

Israel,

a tua dor não te absolve,

não te dá salvo-conduto para o extermínio.

Pelo contrário,

dá-te mais responsabilidade,

mais urgência em saber

quando parar.

 

Porque quem conheceu o inferno

não devia acendê-lo de novo

nos quintais dos outros.

 

 

(Este poema aborda a dolorosa contradição entre uma memória coletiva construída a partir do sofrimento, a Shoá (termo hebraico para o Holocausto), e o silêncio ou cumplicidade diante de um novo sofrimento alheio. A Shoá não é apenas um evento histórico: é uma ferida identitária profunda do povo judeu, marcada por perseguições, campos de extermínio e a tentativa sistemática de apagar uma cultura e um povo.

Contudo, quando essa memória não é acompanhada por reflexão crítica e empatia, pode tornar-se muro, justificativa ou até escudo ideológico para novas formas de opressão. Este poema não questiona o direito à existência de Israel, mas alerta para o risco de que a dor não curada, ou mal interpretada, leve à repetição de lógicas de exclusão e violência.

Relembra que sofrimento passado não legitima sofrimento presente, e que nenhuma identidade coletiva deve ser construída à custa da dignidade de outro povo. Gaza não é Auschwitz, mas o esquecimento da humanidade comum poderá fazer nascer novos infernos.)

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