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quinta-feira, 31 de julho de 2025

TRÍPTICO LEONARDO: Visão · Ocultação · Legado / J.M.J.

Introdução

 

Leonardo da Vinci não pertenceu ao seu tempo.

Nasceu entre eras, entre mundos, entre linguagens.

Artista, inventor, anatomista, místico, visionário,

mas nenhum destes nomes basta.

 

Este tríptico poético não tenta descrevê-lo,

antes, tenta escutá-lo.

 

Cada parte é um ângulo,

uma fresta de luz projetada sobre o enigma que ele foi.

Não se trata de biografia, mas de aproximação.

Não é homenagem, é resposta.

 

A Leonardo, que viu o que o tempo não via,

que ocultou o que o mundo não podia suportar,

e que nos deixou não certezas, mas um chamamento silencioso.

 

 

 

 

I – Visão

 

(do tríptico "Leonardo")

 

Antes do pincel e do voo,

houve o espanto.

Não o espanto que teme,

mas o que rasga o véu do óbvio

e pergunta ao silêncio

o que o mundo nunca soube responder.

 

Ainda menino,

via a água como se visse pensamento líquido,

as nuvens como cartas cifradas,

os rostos como mapas por decifrar.

O seu olhar não parava no visível,

prolongava-se para dentro

de cada forma e do seu reverso.

 

Cada músculo,

cada folha,

cada fio de luz,

era uma palavra sagrada

num evangelho sem deuses.

 

Não buscava Deus nas igrejas,

mas nos tendões do cavalo,

na curva de uma maré,

no hálito da manhã sobre o mármore.

 

Fez da dúvida o seu altar,

da observação, o seu credo,

e da arte,

uma ciência mais íntima do que a ciência.

 

Nada lhe bastava.

Nem o corpo, nem a sombra,

nem a beleza aparente das coisas.

Tinha sede de princípio,

fome de origem,

ânsia de nomear o indizível.

 

Era um mensageiro sem mestre

a escutar o sopro das máquinas invisíveis

que movem a criação.

 

E desenhava.

Desenhava como quem se lembra

do que ainda não aconteceu.

 

 

 

 

II – Ocultação

 

(do tríptico "Leonardo")

 

Nem tudo o que soube revelou.

Nem tudo o que viu, mostrou.

Havia coisas

que não podiam ser ditas sem perderem a alma,

por isso, calou.

 

Mas calou com tinta,

com símbolos disfarçados de mãos,

com números ocultos em drapejados,

com gestos que só o tempo decifraria.

 

O seu Evangelho era pictórico,

e cada tela, um altar

onde a ciência e o espírito selavam pacto secreto.

 

Na Última Ceia

não pintou apenas apóstolos,

pintou forças,

tensões,

arquétipos

num teatro codificado.

À direita do Cristo,

um corpo não masculino,

um vácuo entre eles como um ventre.

 

Era uma mensagem para os séculos,

mas os séculos andavam cegos.

 

Leonardo viveu entre espelhos,

em cadernos invertidos,

em laboratórios de silêncio.

Falava com a sombra,

conversava com a luz.

 

Sabia que o mundo

não suportaria a inteireza da sua visão,

não no tempo em que viveu,

nem no que viria logo a seguir.

 

Preferiu ser o enigma

a ser o mártir

e retirou-se,

não da obra,

mas do ruído.

 

Deixou-nos um legado sem voz,

mas com pulsação,

não para ser lido,

mas para ser pressentido

como quem encontra um espelho

e, por fim,

se reconhece.

 

 

 

 

III – Legado

 

(do tríptico "Leonardo")

 

Não deixou escola,

deixou rastro.

Não quis discípulos,

quis despertar.

 

O seu legado não cabe nos museus,

nem se mede por inventos.

É uma vibração subterrânea

que percorre os séculos

e visita os raros que ainda ousam

ligar pensamento a alma.

 

Mais do que pintar,

ensinou a olhar,

mais do que inventar,

ensinou a escutar o invisível.

Não ensinou fórmulas,

despertou perguntas

que ainda hoje nos queimam as mãos.

 

Leonardo não morreu,

desfez-se

e espalhou-se

em fragmentos de intuição

no coração dos que

não desistem de ver o mundo inteiro

num só gesto.

 

É por isso que o sentimos perto,

sem o saber explicar,

é por isso que algumas obras nos falam

sem som,

sem legenda,

mas com uma urgência serena

que reconhecemos

como se sempre ali tivéssemos estado.

 

O seu legado não é uma herança,

é um chamamento.

 

E a cada um que escuta

renasce o brilho antigo

de uma inteligência viva

que, um dia, se assinou

com nome de homem.

 

Leonardo.

 

 

 

 

Epílogo

 

O Que Leonardo Viu

(para o tempo que ainda não chegou)

 

Não veio para ser entendido,

mas para semear enigmas.

 

Escreveu ao contrário

como quem fala com o espelho do futuro

sabendo que o presente era surdo

e que os sábios do seu tempo

tinham medo das asas.

 

No traço de cada nervo,

no giro espiral de cada flor,

na simetria das marés,

ele via o segredo por detrás da carne,

a geometria do invisível,

a alma esculpida na matemática.

 

Falava com os pássaros

e sonhava engrenagens com pulmões,

máquinas que respiravam,

hélices como folhas ao vento,

asas de papel e músculo

para levantar a Terra inteira da sua ignorância.

 

Mas não disse tudo.

Guardou.

Ocultou.

Disfarçou nos olhos de Mona Lisa

um código que só uma tristeza futura decifraria.

 

Fez da ceia um tabuleiro

onde os apóstolos eram peças de um jogo secreto

e Jesus o centro imóvel

de um universo em rotação sagrada.

À sua direita,

a sombra do feminino,

não uma ausência,

mas uma promessa.

 

Leonardo não pintava quadros.

Abriu portais.

 

Cada página dos seus cadernos

é uma veia ainda a pulsar,

esperando dedos que a toquem

com a reverência da dúvida.

 

E se hoje o chamamos génio,

é porque ainda não temos nome

para quem veio antes do tempo

para ver o que o tempo não via.

 

 

 

Nota de Autor

 

Este tríptico poético é uma tentativa de aproximar a alma de Leonardo da Vinci, não como génio intocável, mas como homem-síntese, onde arte, ciência e espiritualidade se encontraram num ponto de fusão.

Cada parte do tríptico; Visão, Ocultação, Legado, evoca uma dimensão do seu ser:

o olhar inaugural que tudo vê,

o mistério que esconde e protege,

e o rasto que permanece além da sua morte.

Leonardo não foi apenas um inventor ou pintor: foi um iniciador.

E talvez continue a ser um mestre silencioso, daqueles que só se revelam aos que não têm pressa.

A poesia não pretende explicar Leonardo,

mas estar à altura do silêncio que ele deixou.

 

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