Um encontro com o tempo que nos habita,
onde pedras cantam segredos ancestrais
e o sagrado nasce antes da palavra,
antes da cidade, antes do império.
Göbekli Tepe é o espelho onde se revela
o pulso original da humanidade,
um templo de silêncio e símbolo,
um ventre onde germina a memória
que esquecemos, mas que nos sustém.
GÖBEKLI TEPE, O TEMPLO ENTERRADO
Antes da semente cair na mão,
já o homem erguia colunas ao céu.
Não havia cidades, nem muralhas,
mas o círculo já pulsava,
coração de pedra,
útero de estrelas.
Ali, no sopé do silêncio,
reuniam-se os que não sabiam escrever,
mas já liam o voo dos abutres
e o veneno das serpentes
como oráculos inscritos no corpo da Terra.
Mãos calejadas talhavam escorpiões em calcário,
e cada linha era reza,
cada relevo, uma oferenda.
Não se negociava com deuses,
dançava-se com eles.
Caçadores, sim,
mas do invisível.
Coletores, sim,
de visões,
de presságios,
de símbolos a gravitar entre o céu e o osso.
Nada ali servia ao lucro,
nada ao império,
mas tudo ao espanto:
o espanto que une tribos
sem precisar de contratos.
E quando veio o tempo de esquecer,
soterraram tudo
com a mesma delicadeza com que o tinham erguido,
como quem fecha os olhos de um moribundo
para que o sonho continue noutro plano.
Durante milénios,
dormiu ali o ventre do mundo,
resguardado do aço, da cruz e da bomba.
Dormiu, até que alguém ousou escutar
a vibração das pedras
como quem ouve um tambor debaixo da pele.
E agora que regressa à luz,
perguntamos:
quem éramos antes da fome?
quem nos ensinou o sagrado
antes de inventarmos o pecado?
Talvez não tenhamos evoluído,
talvez tenhamos esquecido.
RETORNO AO CÍRCULO
Talvez tenhamos esquecido,
mas o esquecimento é apenas uma camada de terra,
e a memória, uma semente em hibernação.
Reerguer o templo não é mover pedra,
é recordar o ritmo
em que o corpo e o cosmos dançam no mesmo compasso,
é escutar o silêncio,
como quem lê a respiração de um animal sagrado
à beira de desaparecer.
Porque o templo não acabou,
recolheu-se.
Esperou que deixássemos de chamar “progresso”
ao ruído,
“civilização” ao cativeiro,
e “fé” à obediência sem espírito.
Esperou
que voltássemos a olhar o céu
sem querer possuí-lo,
e a terra
sem querer vencê-la.
Göbekli é um espelho:
não do passado,
mas do possível.
Está em ti
quando crias sem pedir licença,
quando rezas sem te dobrares,
quando confias no símbolo
mais do que na instrução.
Talvez o templo esteja a nascer de novo
cada vez que um homem rejeita o ouro
para oferecer silêncio.
Cada vez que uma mulher
desenha círculos no chão
em vez de fronteiras.
Cada vez que alguém
se recorda de que o sagrado
não é aquilo que se constrói,
mas o que se reconhece.
O CÍRCULO INACABADO
Não é preciso voltar ao princípio
se o princípio ainda vive em espiral dentro de nós.
O círculo não acabou,
apenas se quebrou com a pressa das linhas rectas,
com a fome de altura
que esqueceu a profundidade.
Göbekli ensinou-nos sem palavras
que há geometrias mais sábias do que o império,
que o centro não é o trono,
mas o vazio partilhado,
onde todos cabem
e ninguém manda.
E agora,
com as mãos ainda sujas de passado,
perguntamos
como se constrói um templo que não precise de pedra?
como se dança um ritual
sem o véu da religião?
Talvez com gestos simples,
um pão partido sem nome,
um olhar que escuta,
uma criança a riscar espirais na areia
como quem recorda sem saber.
Não teremos de repetir a forma,
mas o espírito.
Não há glória em erguer novas colunas
se não soubermos ouvir o vento
que sussurrava entre as antigas.
O círculo continuará
não nos livros,
nem nas ruínas,
mas naqueles que ousarem
construir sem conquistar,
lembrar sem doutrina,
amar sem dogmas nem mapas.
O templo somos nós
quando deixamos de fugir
do mistério que nos deu origem.
DEDICATÓRIA
A quem escuta a voz da pedra e do silêncio,
a quem ainda dança com o invisível,
aos guardiões do sagrado que não se dobram,
que não se vendem,
mas que permanecem,
no ventre do mundo.
A vós, esta ode.
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