Pensava-me inteiro,
um nome,
um corpo,
um alguém com contornos firmes
e história linear.
Mas sou um acordo provisório
entre triliões de vozes sem rosto,
um condomínio de células,
apenas 43% com a minha bandeira.
O resto?
Inquilinos ancestrais
que habitam a minha boca,
a minha pele,
as cavernas húmidas do intestino,
com a dignidade de quem sempre ali esteve.
Eles digerem por mim,
protegem-me de mim,
educam os meus anticorpos
com a paciência de um velho mestre invisível.
Sou o palco onde bactérias se cumprimentam,
sou o vinho fermentado dos fungos discretos,
sou mais fermentação do que vontade.
E mesmo assim falo de “mim”,
como se fosse um centro,
um trono,
um vértice fixo num corpo instável.
Mas não,
sou o mar que não conhece todas as suas gotas,
sou república sem rei,
um grito que vem de mil gargantas
sem pulmões.
Talvez o ego seja só
a tentativa desesperada
de dar nome ao enxame.
E talvez o amor
seja isso:
reconhecer que nunca estamos sós,
nem sequer por dentro.
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