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sábado, 26 de julho de 2025

Multidão (poema sobre o corpo que não é só nosso) / J.M.J.

Pensava-me inteiro,

um nome,

um corpo,

um alguém com contornos firmes

e história linear.

 

Mas sou um acordo provisório

entre triliões de vozes sem rosto,

um condomínio de células,

apenas 43% com a minha bandeira.

 

O resto?

Inquilinos ancestrais

que habitam a minha boca,

a minha pele,

as cavernas húmidas do intestino,

com a dignidade de quem sempre ali esteve.

 

Eles digerem por mim,

protegem-me de mim,

educam os meus anticorpos

com a paciência de um velho mestre invisível.

 

Sou o palco onde bactérias se cumprimentam,

sou o vinho fermentado dos fungos discretos,

sou mais fermentação do que vontade.

 

E mesmo assim falo de “mim”,

como se fosse um centro,

um trono,

um vértice fixo num corpo instável.

 

Mas não,

 

sou o mar que não conhece todas as suas gotas,

sou república sem rei,

um grito que vem de mil gargantas

sem pulmões.

 

Talvez o ego seja só

a tentativa desesperada

de dar nome ao enxame.

 

E talvez o amor

seja isso:

reconhecer que nunca estamos sós,

nem sequer por dentro.

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