Ainda ecoa o galope no deserto,
um ranger de esporas nas avenidas,
a mão no coldre, o medo no olhar
como se o tempo não tivesse passado.
Erguem-se torres, arranha-céus,
mas a alma ficou na taberna poeirenta,
no saloon das glórias manchadas,
onde o herói era quem matava primeiro.
As armas já não pendem dos cintos
mas dos direitos, sacrosantos, inquestionáveis,
como se a liberdade tivesse cano e gatilho,
como se viver exigisse estar pronto a matar.
Chamam-lhe cultura
mas é uma liturgia de pólvora,
um evangelho de chumbo
onde o próximo é alvo
e o medo, um profeta armado.
Os meninos aprendem cedo a mirar,
mas não a escutar,
aprendem a defender-se,
mas não a confiar.
E quando a dor explode num prédio,
numa escola, num templo,
o silêncio é mais ensurdecedor
do que os tiros,
porque o silêncio é escolha
e a escolha é sempre continuar.
“Mais armas”, gritam.
“Menos leis”, exigem.
Como se não bastasse um planeta ferido
para saber que quem planta morte
ceifa desespero.
Mas ali, no velho e novo faroeste,
a justiça não tem rosto,
tem uma mira
e Deus, se chora,
é por ver que ainda o confundem com um rifle.
(Este poema foi escrito após o tiroteio num prédio de luxo em Nova Iorque,
onde quatro pessoas perderam a vida. Segundo as autoridades, o atirador
planeava um ataque à sede da NFL, o que levanta uma vez mais a questão da
facilidade de acesso a armas nos Estados Unidos.
A América continua a viver sob a sombra longa do seu mito fundador, o do
herói armado que resolve tudo a tiro. Esse imaginário do faroeste
transformou-se em ideologia, e essa ideologia institucionalizou-se na Segunda
Emenda. Hoje, o direito às armas é sustentado por três pilares entrelaçados: o
poder político do lobby, o lucro da indústria de armamento e a simbologia
nacional que confunde liberdade com violência.
Num país marcado por desigualdades profundas, fraca assistência à saúde
mental e culto do individualismo, a proliferação de armas é como lançar
gasolina sobre brasas emocionais. Os EUA afirmam defender-se com armas, mas são
elas que os destroem por dentro.
Este poema não é um ataque cultural, mas uma elegia crítica a uma nação que
ainda confunde Deus com um rifle.)
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