Ele era dois terços deus,
mas o terço humano gritava mais alto.
Ergueu muralhas para prender o tempo,
mas o tempo escorria-lhe entre os dedos.
Gilgamesh,
rei de Uruk,
grande demais para o sono,
forte demais para a paz.
Violava os ritos, os corpos, os nomes,
não por crueldade,
mas por não saber
o que fazer com a eternidade.
Então veio Enkidu,
não como inimigo,
mas como espelho:
selvagem, inocente,
irmão que o céu urdiu da lama.
Lutaram,
abraçaram-se,
foram um.
Desafiaram deuses e monstros,
mataram Huwawa,
profanaram o Cedro,
rejeitaram Ishtar e enfrentaram o Touro.
A glória era deles
e a sentença também.
Enkidu morreu
e Gilgamesh chorou
como nunca choram os reis.
Partiu então,
nu da sua coroa,
a caminhar pelos desertos da morte,
à procura de um segredo
que o tornasse imune à ruína.
Encontrou o velho Utnapishtim,
aquele que sobreviveu ao dilúvio
e perguntou:
"Como fugir daquilo que leva tudo?"
Mas o velho riu-se.
"Tu não vives. Procuras durar."
Gilgamesh mergulhou nas águas,
apanhou a planta da vida,
mas ao descansar,
uma serpente levou-lha.
Regressou a Uruk,
mais velho, não por tempo,
mas por ter descido onde os deuses não tocam.
Olhou as muralhas,
tocou-as
e finalmente entendeu:
não é o corpo que fica,
nem a glória,
mas o gesto humano
escrito na pedra
que um dia alguém irá ler.
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