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terça-feira, 29 de julho de 2025

GILGAMESH (fragmento de barro e eternidade do épico sumério - o rei que lutou contra a morte) / J.M.J.

Ele era dois terços deus,

mas o terço humano gritava mais alto.

Ergueu muralhas para prender o tempo,

mas o tempo escorria-lhe entre os dedos.

 

Gilgamesh,

rei de Uruk,

grande demais para o sono,

forte demais para a paz.

 

Violava os ritos, os corpos, os nomes,

não por crueldade,

mas por não saber

o que fazer com a eternidade.

 

Então veio Enkidu,

não como inimigo,

mas como espelho:

selvagem, inocente,

irmão que o céu urdiu da lama.

 

Lutaram,

abraçaram-se,

foram um.

 

Desafiaram deuses e monstros,

mataram Huwawa,

profanaram o Cedro,

rejeitaram Ishtar e enfrentaram o Touro.

A glória era deles

e a sentença também.

 

Enkidu morreu

e Gilgamesh chorou

como nunca choram os reis.

 

Partiu então,

nu da sua coroa,

a caminhar pelos desertos da morte,

à procura de um segredo

que o tornasse imune à ruína.

 

Encontrou o velho Utnapishtim,

aquele que sobreviveu ao dilúvio

e perguntou:

"Como fugir daquilo que leva tudo?"

 

Mas o velho riu-se.

"Tu não vives. Procuras durar."

 

Gilgamesh mergulhou nas águas,

apanhou a planta da vida,

mas ao descansar,

uma serpente levou-lha.

 

Regressou a Uruk,

mais velho, não por tempo,

mas por ter descido onde os deuses não tocam.

 

Olhou as muralhas,

tocou-as

e finalmente entendeu:

 

não é o corpo que fica,

nem a glória,

mas o gesto humano

escrito na pedra

que um dia alguém irá ler.

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