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segunda-feira, 28 de julho de 2025

A DESCIDA DE INANNA (Poema inspirado no mito sumério) / J.M.J.

Vestiu os sete brilhos do alto,

corou os olhos com fogo,

e partiu.

 

Sabia que a luz não é plena,

sem conhecer a boca da sombra.

 

No portão do mundo esquecido,

uma voz murmurou:

"Para entrares,

deixa o que pensas ser."

 

Primeiro, a coroa;

depois, os brincos,

o colar,

o cetro,

a túnica,

a voz,

e, por fim, o nome.

 

Despiu-se da divindade

até restar apenas o pulso da alma,

nu, palpitante,

perante a irmã esquecida,

aquela que chora

o que todos escondem.

 

E morreu.

Não no corpo,

mas na imagem de si.

 

Durante três dias,

o tempo não respirou.

O trigo secou no sonho,

e os poços não responderam.

 

Até que, da lama,

brotaram dois sussurros

sem forma nem fronteira,

que desceram sem armas

e curaram, sem palavras,

a dor da guardiã.

 

Foi-lhes concedido o corpo pendido,

e Inanna ergueu-se,

não como deusa,

mas como terra tocada pela noite.

 

Ao regressar,

viu o trono ocupado,

o amor ausente,

o ego no altar.

 

E soube:

quem desce e volta

não volta igual,

nem tolera o que antes chamava lar.

 

Ofereceu o amante em troca,

não por vingança,

mas para ensinar-lhe o ciclo:

metade da vida, luz;

metade, mergulho.

 

Desde então,

as estações dançam.

O corpo recorda,

o espírito curva-se,

não por fraqueza,

mas por reverência à transformação.

 

E Inanna,

em cada mulher que cai

sem deixar de ver,

em cada homem que larga o poder

para tocar o ventre do real,

desce e regressa,

sempre.

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