Este não é um evangelho para ser lido nos altares.
Não traz milagres oficiais, nem dogmas esculpidos em pedra.
É feito de ausência, de dúvida, de gestos pequenos
que foram soterrados sob séculos de incenso e poder.
Aqui, não se procura o Cristo coroado,
mas o homem de sandálias gastas,
que falava com mulheres, com leprosos, com romanos,
com quem o templo expulsava.
Não se ergue nenhuma cruz para adorar,
não se canta nenhuma ressurreição triunfante.
Este evangelho escuta os que ficaram
quando o espetáculo terminou,
os que viram fugir o homem
e nascer o ídolo.
É o evangelho dos que não escreveram,
mas guardaram,
dos que não mandaram calar,
mas escutaram,
dos que foram riscados da história,
porque a verdade que traziam
não cabia na narrativa da vitória.
O que aqui se diz
não pretende destruir fé nenhuma,
mas desenterrar o amor que ficou por baixo
de camadas de medo, poder e teologia.
Este é o evangelho dos silenciados,
dos que partiram o pão sem cerimónia,
dos que curaram sem licença,
dos que amaram sem dogma
e de um homem, chamado Jesus,
que talvez não tenha voltado
porque nunca se foi.
A Ausência Que o Mundo Inventou
Não sabia escrever,
mas falava como quem lembrava
de um sítio que ninguém mais conhecia.
Não era príncipe, nem doutor,
tinha as mãos marcadas pelo ofício,
o olhar gasto do povo que caminha curvado,
mas dentro
trazia uma chama
como quem não aceita
que o mundo esteja virado do avesso.
Disse o que viu,
fez o que sentiu
e, por isso, prenderam-no.
O corpo perdeu-se
entre cruzes e fugas,
entre os que choraram
e os que calaram.
Talvez tenha morrido,
talvez tenha fugido com o amor
que ficou apenas em silêncio.
O que ficou não foi ele,
foi o vazio que deixou.
E o povo, esse povo,
que não suporta o silêncio,
escreveu-lhe eternidade
com as palavras dos que sabiam escrever
mas não o conheceram.
Chamaram-lhe Filho,
chamaram-lhe Deus,
mas ele
só queria que ninguém mais fosse escravo.
Chamaram-lhe Redentor,
mas ele
só queria curar os olhos
de quem já não via saída.
Talvez fosse duro,
áspero como as tábuas que moldava.
Talvez gritasse,
talvez calasse quando devia falar,
talvez amasse como quem fere,
e perdoasse como quem sangra.
Mas nunca soube
que os seus passos iam rasgar
os séculos,
nem que, um dia, o seu nome
iria pesar mais do que o seu corpo.
Talvez, algures,
tenha morrido velho,
sem saber que, para milhões,
ele nunca morreu.
Não Voltou, Porque Nunca Se Foi I
Não ressuscitou ao terceiro dia,
ressuscita em cada um que se ergue
quando tudo o resto diz: deita-te.
Ressuscita sem milagre,
sem túmulo vazio,
nas mãos de quem parte o pão
e o reparte sem perguntar a quem.
Não subiu aos céus.
Desceu,
desceu até ao mais fundo de cada injustiça,
ficou aí,
como ferida aberta em quem vê
e não consegue virar o rosto.
Nunca disse: “Adorem-me.”
Disse: “Sigam-me.”
E mesmo isso
foi mal interpretado.
Porque seguir não era construir catedrais,
era destruir os muros do medo.
Não era repetir palavras sagradas,
era ouvir o grito dos que já não sabem dizer nada.
Chamaram-lhe manso,
mas ele insultou os senhores do templo.
Chamaram-lhe puro,
mas andava com mulheres que o templo rejeitava.
Chamaram-lhe cordeiro,
mas rugia contra a hipocrisia
e rasgava as máscaras dos santos.
Era homem, inteiro,
com raiva,
com cansaço,
com dúvidas e com sede,
com amor que não cabia nos moldes
dos que só sabem amar o que lhes obedece.
Não escreveu nada,
mas escreveram sobre ele
tudo o que convinha.
Apagaram a sujidade dos pés,
o suor da testa,
a contradição nos olhos.
Ficou o ícone.
Sumiu o homem.
Não Voltou, Porque Nunca Se Foi II
Chamaram-no Cristo,
mas ele chamava-se só Jesus,
e antes de lhe colarem o título
foi filho, foi aprendiz, foi olhar atento
à madeira que se molda,
às mãos que trabalham,
e aos rostos dos que têm fome.
Não fundou religião.
Fundou encontros
na beira dos caminhos,
no chão de quem caía,
no silêncio entre uma pergunta e outra.
E foi isso que os poderosos não suportaram:
que ele olhasse os invisíveis
como reis sem coroa
e que pusesse em causa
tudo o que se dizia intocável.
Talvez tenha fugido,
talvez não tenha morrido,
talvez tenha desaparecido com Maria
e com o ventre grávido de um mundo que ainda não sabia nascer.
Ou talvez tenha morrido, sim,
num madeiro injusto,
como tantos que, depois dele,
continuaram a ser crucificados
por dizerem verdades simples.
Mas o que ficou
não foi a certeza da cruz,
nem o dogma,
nem a promessa do céu.
O que ficou
foi a memória de um homem
que falava com autoridade
sem nunca precisar de gritar mais alto que o amor.
Não era bipolar,
era humano.
E ser humano,
num mundo de máscaras,
é sempre escandaloso.
Não Voltou, Porque Nunca Se Foi III
Diziam que era herético,
porque pensava com liberdade,
e, em vez de temer a ira de Deus,
preferia tocar nos intocáveis.
Curava no dia errado,
entrava em casas erradas,
amava sem pedir licença ao templo.
Desafiou o preço da ordem,
deitou as mesas dos mercadores,
porque sabia
que nenhuma alma se compra
e nenhuma fé se vende
sem se perder o nome de Deus no processo.
Se disse que destruiria o templo,
não era de pedra que falava —
era da mentira que nele se erguia.
O templo era o sistema.
E os três dias,
talvez fossem apenas a metáfora
do tempo que cada alma precisa
para renascer de si mesma.
Jesus não escreveu livros.
Disse histórias,
com sementes dentro.
E partiu.
Ou ficou,
mas longe do nome que lhe deram.
Talvez a última coisa que tenha dito
não tenha sido “está consumado”,
mas apenas um suspiro:
de cansaço,
de amor
ou de libertação.
Não Voltou, Porque Nunca Se Foi IV
A ausência dele
foi o solo fértil do mito.
Porque o povo sem libertador
inventa eternidades
para suportar o agora.
Jesus,
humano de ossos e sede,
foi sendo desenhado
num trono de ouro etéreo.
A sua fuga, se foi fuga,
transformou-se numa ascensão.
A sua morte, se houve morte,
virou um terceiro dia
de silêncio com incenso.
Talvez ele tenha envelhecido longe,
em terra onde ninguém o conhecia,
carpinteiro novamente,
a ensinar a filha a sorrir com os olhos,
como ensinava os discípulos a ver o mundo.
E talvez nunca tenha sabido
que em seu nome
se construíram impérios,
se queimaram mulheres,
se crucificaram inocentes.
Não voltou,
porque nunca se foi,
ou porque já cá estava
em todos os que ousam
falar por amor
contra os altares do poder.
Maria Levou o Silêncio
Levantou-se antes do sol,
como quem pressente o tempo a ruir.
Atravessou vales de pedra e sal
com um ventre que crescia
e uma certeza que não cabia em palavra nenhuma.
Deixou para trás
um corpo ou um vulto,
um nome perseguido
e os olhos de homens que se ajoelham
não por fé,
mas por medo.
Chamaram-lhe prostituta
porque só sabiam nomear as mulheres,
pelo que ofereciam aos homens.
Ela oferecera o ouvido,
o abraço,
a dúvida,
a pergunta.
E ele ouviu tudo.
Maria não guardava dogmas,
guardava gestos:
a forma como ele partia o pão,
como tocava a terra
antes de curar.
Talvez tenha atravessado o mar.
Talvez tenha sussurrado a verdade
a uma filha que cresceu sem altar,
mas com memórias de um homem
que não era Deus,
mas era inteiro.
Maria levou o silêncio
porque sabia que as palavras seriam corrompidas.
E que o amor,
por não caber nos templos,
seria expulso deles.
Ele Nunca Soube Que Era Imortal
Chamavam-me de Rabi,
de profeta,
de filho.
Mas eu apenas respondia
a quem me chamava pelo olhar.
Não procurei templos,
nem cruzes,
nem tronos vazios à espera de um regresso.
Procurei sombra onde os outros ardiam
e voz para os que só sabiam calar.
Fugi quando percebi
que já não falavam comigo,
mas com a ideia que fizeram de mim.
Vi homens curvarem-se não diante do amor,
mas do medo.
Erguerem altares
com ouro roubado a viúvas,
com pedras arrancadas à mansidão.
Nunca disse que era Deus.
Disse que o Reino estava dentro.
E rasgaram o céu
para ver se eu lá morava.
Nunca pedi que morressem por mim,
mas morreram
e mataram,
e fundaram reinos.
Eu apenas fui um homem
de sandálias gastas,
que dizia a verdade em voz baixa,
para não acordar o ódio.
Se soubesse que um dia
me chamariam imortal,
teria enterrado o meu nome
junto à semente do trigo.
Hoje, sou um velho entre pastores,
falo pouco,
e quando me perguntam o nome,
respondo apenas:
“Já me chamaram de tudo. Agora sou só homem.”
Fragmento do Discípulo Esquecido
Ele não nos ensinou a construir templos,
nem a erguer estátuas.
Veio com mãos de carpinteiro
e palavras que cortavam como o vento frio.
Quando o prenderam,
o medo entrou nos nossos olhos,
e a esperança escureceu como nuvem densa.
Pedro caiu, João calou-se,
mas eu pergunto-me ainda hoje:
quem é que desapareceu,
o homem que andava entre nós,
ou a sombra que criámos?
Disseram que morreu,
mas eu vi o seu olhar fixo no horizonte,
como quem não acredita no fim.
E Maria?
Não era apenas mulher,
era o segredo mais guardado,
o mistério que não querem que saibamos.
Eles falam de ressurreição,
mas eu vejo apenas
a fuga,
o exílio de uma esperança perdida
num mundo que não quis escutar.
Ainda assim, quando fecho os olhos,
escuto as suas palavras:
“Amarás o próximo como a ti mesmo.”
E pergunto-me se o amor
é tudo o que resta
quando o mito se desfaz.
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