Chamaram-lhe “reforma”,
mas era só uma troca de pele,
um corte silencioso
no nervo do que resta da dignidade.
Dizem que é para “modernizar”,
mas não tocam nos lucros,
nem nos assentos de couro dos conselhos de
administração,
apenas nos ossos do horário,
no sangue das faltas,
no útero da ausência.
Querem que o luto tenha parecer médico,
como se a dor tivesse carimbo
e a perda, cronómetro...
Não confiam na lágrima,
só no atestado.
Falam de “flexibilidade”
como quem fala de ginástica num campo de minas,
e esticam o contrato a termo
até que se torne nó
à volta da garganta de quem espera um amanhã.
Invocam produtividade
com a mesma frieza com que se conta gado,
e aplicam outsourcing como se fosse
anestesia para a consciência social,
despedem à sexta, externalizam à segunda,
e lavam as mãos com estatísticas.
Propõem mexer na greve,
não para a compreender,
mas para a domesticar.
Querem serviços mínimos
para garantir lucros máximos,
mas calam os gritos mínimos
de quem já vive entre silêncios obrigatórios.
No fundo,
é uma lei que não nasce do corpo,
mas do cálculo.
Não escuta o operário,
mas os algoritmos,
não protege a mulher que sangra em silêncio,
nem o pai que enterra um filho sem nome.
A reforma não reforma,
revoga por dentro,
disfarça cortes com linguagem,
e transforma a esperança
num ficheiro Excel.
Se o futuro do trabalho é este,
então o futuro já é passado,
e a dignidade virou taxa variável.
Não me falem em progresso,
quando chamam modernidade
àquilo que volta a ferir,
onde já tínhamos sarado...
(Este poema surge da inquietação diante da “Reforma
Trabalho XXI” proposta pelo Governo, que pretende ser um passo à frente, mas na
verdade é uma volta atrás na proteção dos direitos laborais.
Quis traduzir, em linguagem poética, o impacto dessas
medidas, o desrespeito pela dor humana, a precarização do trabalho, o
cerceamento do direito à greve, tudo disfarçado com palavras bonitas como
“flexibilidade” e “produtividade”.
A poesia, aqui, é uma chamada à reflexão sobre o que realmente significa progresso: não pode ser às custas da dignidade, nem do justo equilíbrio entre empregadores e trabalhadores.
Que este poema ajude a despertar consciências e a
fomentar o debate urgente.)
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