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domingo, 27 de julho de 2025

A Coroa de Vento / J.M.J.

[I – O Homem e o Vazio]

 

No alto da torre de vidro e ouro,

o homem que gritava mandamentos

fez-se estátua de si próprio;

não ouvia,

não queria ver,

ordenava com dedos sujos de dívida.

 

O povo, outrora ajoelhado,

rasgava os panos da promessa,

cansaram-se dos altares vazios,

das moedas sem pão,

dos discursos que explodiam como granadas em salas de espera.

 

Vieram os gritos das cidades,

os ossos das máquinas quebradas,

os filhos de quem construiu os muros,

agora empurrados para lá deles.

 

O trono oscilava.

 

Generais calaram-se primeiro,

depois os camponeses desligaram os ecrãs,

os ventos do oeste, negros de fumo,

traziam mensagens que ninguém ousava ler em voz alta.

 

Ele falou, mas a voz soava oca,

como um tambor num deserto onde só restam esqueletos de bandeiras.

 

Ergueu-se então o grande silêncio,

não era o fim, era o eco do fim.

Os mercados cerraram os olhos

e as igrejas arderam em dúvida.

 

E ele, sozinho na varanda dourada,

viu o povo queimar os próprios papéis de identidade

e cuspir nas placas com o seu nome.

 

Já não era temido,

nem amado,

nem sequer lembrado com clareza.

 

Apenas um rosto esculpido no pó

de um tempo que jurou durar para sempre,

mas durou o tempo exato do engano.

 



[II – Depois do Homem, a Voz]

 

Quando a estátua caiu, não houve fanfarra,

nem sangue,

nem vingança,

apenas um silêncio exato,

como se o mundo tivesse prendido a respiração por séculos

e finalmente expirasse.

 

A multidão não subiu ao trono,

desfez o trono,

fez bancos baixos,

círculos de pedra,

onde já não se gritava, ouvia-se.

 

Não havia bandeiras,

nem promessas,

nem dogmas de aço.

 

Apenas pão,

e nomes trocados como sementes,

e crianças que cresciam sem medo de aprender a verdade.

 

E o que ficou

foram cinzas e sementes,

ruínas e raízes,

a memória de um tempo em que um só homem se quis Deus

e acabou esquecido por quem aprendeu a ser gente.

 

E nas praças onde outrora o seu rosto pendia gigante,

pintaram-se rostos anónimos,

feitos de mil traços cruzados

e escreveram, numa língua antiga que todos sabiam sem ter aprendido:

 

"Aqui morreu um império,

aqui começou o tempo dos muitos."

 



[III – Carta aos que quiseram durar para sempre]

 

Tu que ergueste torres com o teu nome

e achaste que o tempo se dobrava ao teu fôlego,

ouve agora o que sussurra o pó das tuas fundações:

 

nem os reis duram,

nem os muros,

nem os hinos,

só dura aquilo que é capaz de mudar.

 

Tu falaste de glória,

mas esqueceste o preço do silêncio alheio,

tu gritaste por ordem,

mas sem justiça, ela racha como vidro ao sol.

 

E no fim, foste só mais um,

como os muitos que vieram antes de ti,

com coroas de vento,

mandíbulas de ferro

e olhos que não sabiam chorar.

 

Deixaste para trás não um legado,

mas uma lição:

que o poder sem escuta é um buraco,

e o medo é sempre um edifício de areia.

 

Agora, as crianças brincam sobre os mapas que desenhaste

e riem,

e desenham outros

e talvez, um dia,

alguém conte a tua história,

não como exemplo,

mas como aviso.

 

Fica o som do mundo novo,

feito de vozes múltiplas,

sem estátuas nem tronos,

mas com chão firme

e olhos abertos.

 



Epílogo – Aos Herdeiros do Engano

 

Que os que o ergueram como farol,

cegos de medo, ou de lucro, ou de crença,

olhem agora o rasto da sua sombra

e vejam:

não se faz mundo com muros,

nem futuro com ruído.

 

Chamaram-lhe gigante,

mas os gigantes não caem sozinhos,

caem com os ombros de quem os sustentou,

caem com as vozes que os defenderam,

mesmo quando sabiam que mentiam.

 

Este não foi apenas o fim de um homem,

mas o espelho partido de todos os que o imitaram,

com palavras ocas e fardas novas.

 

Aos que ainda pensam que governar é gritar mais alto:

escutem.

 

Aos que ainda acreditam que o poder se herda:

olhem o pó onde ardeu o nome dele.

 

Aos que ainda sonham com o mundo dobrado aos seus pés:

lembrem-se,

o chão é sempre de todos.

 

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