A água está límpida
Na mesa de cabeceira
repousa o vigia:
um copo com água e sal
transparente como manhã sem pressa.
Nenhuma sombra dança no fundo,
nenhum grão se rebela.
A matéria fundiu-se no invisível
e permanece.
Não há sinal de combate.
As forças estão quietas,
como se o tempo, por um instante,
tivesse aceitado não pedir nada.
A água não mente:
se estivesse turva, diria,
se houvesse veneno, falaria,
mas hoje é apenas clara,
sem mensagem nem alarme,
apenas presença.
Talvez seja um sim,
dado no silêncio,
ou talvez apenas um intervalo
entre duas tempestades.
Há duas presenças na parede
No quarto onde nada parece especial,
há dois sóis pendurados por uma mola,
frágeis, como quem sabe que o vento é possível.
O mais novo sorri-me de dentro de uma casa
feita por mãos pequenas
e escrita por dentro: Pai, amo-te.
Como se fosse esse o nome da moldura.
O mais velho olha de frente,
recortado num oval limpo,
com a pose de quem já sabe que há olhos
do outro lado da câmara.
Quase um ator, quase um espelho
que me devolve algo que ainda estou a aprender.
Ambos estão ali,
não como passado,
mas como bússola.
E entre eles, no intervalo da mola,
o ar fica suspenso,
como se o tempo não ousasse
passar sem pedir licença.
A água no copo continua límpida.
E a parede já não está vazia.
Nem eu.
O quarto escuta
Não há relógio a marcar nada,
mas o tempo pulsa nos intervalos
entre um pensamento e outro.
O quarto não exige,
não pesa,
é um recipiente onde me despejo
sem pressa nem forma.
Há silêncio, mas não é ausência.
É um silêncio que escuta,
que recolhe o que não sei dizer,
que guarda os nomes que não chamo.
O copo com água e sal não opina,
os retratos não pedem nada.
Mesmo assim, sei que há ali um pacto,
como se tudo tivesse sido alinhado
para eu poder, por fim,
ouvir.
Não palavras,
mas aquele rumor de fundo
que às vezes se chama alma,
ou chamamento.
E nessa escuta,
sou menos eu
e mais
possibilidade.
A cama é onde me escondo
Há dias em que não quero ser visto,
nem ouvido,
nem tocado.
A cama espera-me sem perguntas.
Não julga,
não exige,
é abrigo e confissão.
Deito-me como quem se entrega
a um fundo onde nada se resolve,
mas tudo se mostra.
As ansiedades alinham-se no escuro,
os medos sentam-se à beira do colchão,
as angústias deitam-se comigo,
sem pedir licença.
Mas a cama aguenta,
segura o peso todo,
sem quebrar.
É aqui que penso,
demasiado, às vezes,
mas também é aqui que, aos poucos,
as palavras voltam
ou o silêncio amolece,
ou a dor se cansa de doer.
A cama não é fuga,
é caverna.
E na caverna,
às vezes,
a semente germina.
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