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segunda-feira, 7 de julho de 2025

Entre as Cinzas / J.M.J.

Entre as cinzas que ainda ardem na memória,

o eco de um Deus antigo

caminha com passos que arranham o tempo,

deixando marcas em cada dobra do presente.

Ele, que olhou o abismo da Terra

e viu nela a imundície de um povo

que adorava ídolos de prata e pedra,

ergueu a sua espada de fogo,

como um relâmpago congelado

no instante da queda.

Ali, entre as águas turvas

de um passado denso como o breu,

as chamas dançaram,

consumindo os corpos dos inimigos,

mas poupando as virgens,

que se tornaram estandartes

de um império de barro e sangue.

 

Hoje, porém, na sua ausência,

a Terra não clama mais pela espada.

As cidades não se erguem

sobre os ossos daqueles que,

com medo ou devoção cega,

se curvaram ao som de trovões

que jamais existiram.

Não mais as crianças são aprisionadas

em olhares cruéis,

nem os corpos das mulheres

se tornam mercadorias trocadas

por promessas de um futuro que nunca chega.

 

E o Deus,

aquele que um dia ordenou

que os fracos fossem esmagados

e as virgens entregues aos soldados,

hoje, seria um estranho se vagasse entre os homens.

Como poderia ele,

que considerava o sofrimento

um instrumento de purificação,

caminhar nas avenidas iluminadas de uma civilização

que, em nome de algo muito mais tênue,

prega a igualdade?

Como poderia a sua visão do mundo,

onde a vingança se equilibra na balança do direito divino,

encaixar-se nas mãos das nações que juram,

com vozes insuportavelmente humanas,

proteger o indefeso?

 

 

Mas o Deus,

na sua memória amarelada,

ainda olha para as nações e pensa:

"O que se fez da justiça,

senão uma máscara de hipocrisia?"

Ele ainda murmura nas fronteiras

onde homens, sob as bandeiras do progresso,

continuam a sangrar.

E o Deus antigo,

cujas mãos sujas de guerra

forjaram os destinos de povos,

agora olha para a Terra e se pergunta:

"Onde estão os que ainda ouvem o meu grito?"

Um grito que, sem dúvida, soa diferente,

mas ressoa na calada de um mundo

que não consegue mais distinguir

o que é sagrado do que é monstruoso.

 

E o que resta dos povos

que se ergueram sob a força de um Deus vingativo,

onde a justiça se confundia com a espada

e a clemência era um luxo

reservado aos que se dobravam ao poder?

A humanidade, agora,

em seu desejo cego de preservação,

ergue estandartes de direitos e liberdades

que não seriam compreendidos

pelos olhos de um Deus que, ao olhar para a Terra,

não via seus filhos, mas seus servos.

A terra não mais acolhe as ordens de um Deus

que dividia o mundo em vencedores e vencidos,

que abria a porta do inferno

para aqueles que se recusavam a se curvar.

Hoje, sua espada enferrujou,

e os homens aprenderam a olhar uns aos outros

não como inimigos a serem vencidos,

mas como reflexos de um mesmo medo,

uma mesma esperança.

 

Na verdade, o eco de sua presença

ainda murmura nas sombras

de uma guerra que nunca acaba,

mas a humanidade, em sua busca de liberdade,

esqueceu o som da sua voz.

Ou talvez, apenas, se tenha cansado

da sua retumbante autoridade.

O que resta de sua verdade é um esqueleto de crença

que não cabe mais nos corpos do presente.

Ele não é mais o rei dos céus,

mas uma lembrança trágica,

uma lenda distorcida

pelos anos que ainda tentam encontrar sentido

nas palavras de um tempo que,

por mais eterno que tenha sido,

não se encaixa nos dias que correm.

 

E assim, o Deus que exigia o sacrifício,

que definia o destino dos povos

com o peso de seu olhar,

tornou-se uma antítese de si mesmo.

Ele, que uma vez modelou o mundo

a partir do fogo e da guerra,

agora é desconstruído por um universo

que já não crê em suas chamas.

Onde, nas suas cidades arrasadas, ele via a justiça,

agora se vê a humanidade, cansada

de se deitar sob a dor de suas ordens,

buscando, nas ruínas

de um império velho como o tempo,

um novo caminho,

sem olhar para as sombras de um Deus

que jamais se cansou de se vingar.

 

Quem, então, pode afirmar

que ele ainda é o Deus das estrelas,

quando o coração da Terra bate

em compasso diferente,

quando o sofrimento e a punição

não são mais respostas para a dor?

A memória do fogo persiste,

mas o fogo agora não queima mais.

 

E aqueles que ainda crêem ouvir o seu grito,

tentam seguir o rastro do fogo apagado.

Erguem suas vozes

em nome de um Deus que já não é,

tentando recriar suas leis com sangue e ferro.

Mas este Deus, ao olhar o mundo de hoje,

não é mais o Deus do bem,

mas o Deus do mal.

E os que desejam conquistar e dominar,

não compreendem que a chama

que buscam alimentar,

queimarão os próprios corações.

 

Pois o que antes se chamou justiça,

é agora o peso da opressão,

e o que antes se disse puro,

é agora o eco da destruição.

Este Deus,

que moldou impérios com o medo,

não encontra mais o seu lugar entre os homens,

pois os homens não podem mais viver

na sombra de seu nome.

 

E aqueles que insistem em seguir suas ordens,

seguem um caminho vazio,

um caminho que já não reflete a verdade,

mas o espelho quebrado de um passado

que não pode ser revivido.

 

E o que resta agora é o silêncio,

de um Deus silente que já não grita,

mas sussurra para aqueles que se ouvem

apenas no eco das ruínas.

E neste silêncio,

o povo aprende a renegar o mal,

pois o mal nunca foi Deus,

mas a sombra que projetamos sobre o mundo.

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