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terça-feira, 8 de julho de 2025

A Aldeia Em Nós / J.M.J.

É difícil sair da aldeia.

Não falo da geografia,

mas da raiz entranhada no peito,

da mãe, da terra, da casa,

dos ritos que nos ensinaram

o nome das coisas e o medo do mundo.

 

Mesmo que o corpo parta,

há lugares que permanecem em nós

como um murmúrio de pertença,

um chão interior onde tudo começa

e, por vezes, se estagna.

 

Não se trata de renegar o que fomos,

mas de soltar o nó da dependência

que nos impede de sermos vastos.

 

A liberdade não é um abandono,

é um alargamento.

É saber que há outras vozes,

outros deuses, outras casas possíveis

dentro da alma.

 

Há quem estude, viaje, abrace o mundo,

mas continue a carregar, como uma sombra,

a aldeia que nunca soube largar.

 

Ser universal não é ser sem origem.

É deixar que a origem se dilua no infinito,

como um rio que reconhece o mar

sem esquecer a nascente.

A Parte Que És (para os que sabem que, mesmo na discordância, votar é afirmar-se) / J.M.J

Não é de pedra o chão que pisas.

Move-se contigo.

Cada passo traça caminho,

mesmo quando não te apercebes.

 

O mundo não é feito só de grandes vozes.

É tecido nas margens,

nas escolhas pequenas,

nos silêncios que se tornam presença.

 

És célula de um corpo maior.

E o corpo sente a ausência

de quem se cala.

 

Não é a promessa que transforma.

É a lucidez do que se escolhe,

o acto sem ilusão,

a palavra com raiz.

 

Mesmo cansado,

mesmo descrente,

o teu lugar não se apaga.

O que recusas dizer

outro dirá por ti.

 

Por isso, sê a parte que és.

Vive com a dignidade

de quem sabe que importa.

 

Porque importa.

Mais do que te dizem.

Mais do que imaginas.

No Quarto / J.M.J.

A água está límpida

 

Na mesa de cabeceira

repousa o vigia:

um copo com água e sal

transparente como manhã sem pressa.

 

Nenhuma sombra dança no fundo,

nenhum grão se rebela.

A matéria fundiu-se no invisível

e permanece.

 

Não há sinal de combate.

As forças estão quietas,

como se o tempo, por um instante,

tivesse aceitado não pedir nada.

 

A água não mente:

se estivesse turva, diria,

se houvesse veneno, falaria,

mas hoje é apenas clara,

sem mensagem nem alarme,

apenas presença.

 

Talvez seja um sim,

dado no silêncio,

ou talvez apenas um intervalo

entre duas tempestades.

 

 

 

 

Há duas presenças na parede

 

No quarto onde nada parece especial,

há dois sóis pendurados por uma mola,

frágeis, como quem sabe que o vento é possível.

 

O mais novo sorri-me de dentro de uma casa

feita por mãos pequenas

e escrita por dentro: Pai, amo-te.

Como se fosse esse o nome da moldura.

 

O mais velho olha de frente,

recortado num oval limpo,

com a pose de quem já sabe que há olhos

do outro lado da câmara.

Quase um ator, quase um espelho

que me devolve algo que ainda estou a aprender.

 

Ambos estão ali,

não como passado,

mas como bússola.

 

E entre eles, no intervalo da mola,

o ar fica suspenso,

como se o tempo não ousasse

passar sem pedir licença.

 

A água no copo continua límpida.

E a parede já não está vazia.

Nem eu.

 

 

 

 

O quarto escuta

 

Não há relógio a marcar nada,

mas o tempo pulsa nos intervalos

entre um pensamento e outro.

 

O quarto não exige,

não pesa,

é um recipiente onde me despejo

sem pressa nem forma.

 

Há silêncio, mas não é ausência.

É um silêncio que escuta,

que recolhe o que não sei dizer,

que guarda os nomes que não chamo.

 

O copo com água e sal não opina,

os retratos não pedem nada.

Mesmo assim, sei que há ali um pacto,

como se tudo tivesse sido alinhado

para eu poder, por fim,

ouvir.

 

Não palavras,

mas aquele rumor de fundo

que às vezes se chama alma,

ou chamamento.

 

E nessa escuta,

sou menos eu

e mais

possibilidade.

 

 

 

 

A cama é onde me escondo

 

Há dias em que não quero ser visto,

nem ouvido,

nem tocado.

 

A cama espera-me sem perguntas.

Não julga,

não exige,

é abrigo e confissão.

 

Deito-me como quem se entrega

a um fundo onde nada se resolve,

mas tudo se mostra.

 

As ansiedades alinham-se no escuro,

os medos sentam-se à beira do colchão,

as angústias deitam-se comigo,

sem pedir licença.

 

Mas a cama aguenta,

segura o peso todo,

sem quebrar.

 

É aqui que penso,

demasiado, às vezes,

mas também é aqui que, aos poucos,

as palavras voltam

ou o silêncio amolece,

ou a dor se cansa de doer.

 

A cama não é fuga,

é caverna.

E na caverna,

às vezes,

a semente germina.

 

A Fenda Maleável /J.M.J.

A realidade não é pedra,

nem espelho.

É membrana viva.

 

Ao toque da mente,

oscila.

À luz do pensamento,

transfigura-se.

 

Há quem a molde com medo,

e veja monstros.

Há quem a toque com desejo,

e veja miragens.

 

Mas quem a contempla em silêncio

pode ver a sua trama:

a vibração por detrás da matéria,

a fluidez por detrás da forma.

 

Cada pensamento é um traço

sobre a superfície do mundo.

Cada crença, um sopro

que redesenha o chão.

 

Por isso,

vigia o que pensas.

Sente antes de desejar.

E cala-te, se o teu verbo

não servir a verdade.

 

O universo escuta

na mesma língua em que o sonhas.

Rede Viva / J.M.J.

Há um fio que me atravessa

sem que o veja,

mas sei-o em mim

como quem reconhece

a pele do vento nas pálpebras.

 

Não há silêncio no espaço,

há escuta.

 

Cada pedra pensa no seu tempo,

cada folha responde a um nome

que esquecemos.

 

A teia não se rompe.

Mesmo quando o grito é surdo,

ela estremece.

 

Somos células de um corpo

que sonha em espiral.

E cada movimento,

se puro,

move o centro.

 

Tudo vibra em segredo

porque segue a frequência

daquilo que é verdadeiro.

O Palco e a Plateia / J.M.J.

No palco, a luz se acende,

A cortina se ergue, lenta,

E o ator, com voz ardente,

Desperta a alma que enfrenta.

 

Mas se a fala é labirinto,

E o movimento, enigma fechado,

O público, em seu recinto,

Sente-se deslocado.

 

O teatro, arte viva,

Deve ser ponte, não muro,

Uma chama que cativa,

Um espelho do futuro.

 

Que o autor ouça a cidade,

E o encenador, atento,

Traga à cena a verdade,

Com empatia e sentimento.

 

Pois no encontro do olhar,

Entre o palco e a plateia,

É que o teatro, a pulsar,

Cumpre a sua epopeia.

A Palavra Que Sabe de Gente /J.M.J.

Não é no vidro fosco da erudição

que a chama se acende.

É no rosto que escuta,

na carne que vibra

quando a palavra lhe fala de si.

 

O teatro não é torre,

é chão de terra batida,

onde o sapato sujo do camponês

e o passo apressado do doutor

partilham o mesmo assento de espanto.

 

A verdade não mora no escuro

onde se encena o ruído do vazio.

A verdade entra de olhos abertos,

com as mãos cheias de perguntas,

e senta-se ao nosso lado.

 

Dai-nos a arte que não se envergonha

de ser ponte,

de ter barro nas botas,

de rir alto,

de chorar por dentro

e de permanecer próxima.

 

Porque a beleza não precisa

de ser difícil

para ser profunda.

Basta que saiba

o nome do coração.