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domingo, 19 de outubro de 2025

Advertências à Espécie Pensante - Nove reflexões sobre a consciência e o retorno

Prólogo

 

Há muito que a espécie pensante caminha sobre a Terra com a ilusão de domínio.

Erguemo-nos acima do solo, inventámos o tempo, a máquina, a crença e a dúvida,

e esquecemo-nos de ouvir o silêncio de onde tudo brota.

 

Estes nove poemas são um espelho da travessia.

Não são acusações, mas lembranças.

Não falam contra o mundo, mas em favor da lucidez.

 

Cada poema é uma advertência, não no sentido de castigo,

mas de chamamento: um convite a recordar o que fomos

antes de nos chamarmos “humanos”.

 

São nove vozes, nove reflexos de uma mesma consciência que desperta,

como se o próprio universo, cansado de esperar,

falasse através do coração da matéria.

 

Notas sobre o ciclo

 

Os poemas seguem a estrutura simbólica do nove,

número do retorno e da gestação espiritual,

a mente dividida em nove, que se refaz em totalidade.

 

Cada parte representa um espelho da alma coletiva:

 

I. A Matéria que Sonha — O despertar do ser na matéria; a origem esquecida.

 

II. O Tempo que Devora — A perda da presença; a pressa como fuga de si.

 

III. A Máquina e o Coração — A alma confrontada com a sua própria criação.

 

IV. A Terra que Sufoca — A mãe traída; a urgência de reconexão com o planeta.

 

V. O Medo que Ensina — A sombra como mestra interior; o medo como via para a fé.

 

VI. A Fé das Sombras — A crítica à crença cega; o regresso ao sagrado interior.

 

VII. O Corpo do Silêncio — O reencontro com a escuta, o corpo e o espírito.

 

VIII. A Mente que Desperta — A dissolução do ego; a visão da unidade.

 

IX. O Círculo do Retorno — A reconciliação final; o sonho que se reconhece desperto.

 

O ciclo pode ser lido como um caminho iniciático,

da ignorância à consciência,

da dispersão à comunhão.

 

I — A Matéria que Sonha

 

No princípio, o pó sonhou consigo mesmo

e chamou-se vida

e ergueu-se, curioso,

para contemplar o espelho do céu.

 

Mas o sonho tornou-se vontade,

e a vontade esqueceu a origem.

A matéria passou a julgar-se mente,

e a mente, deusa do pó.

 

Construímos torres com medo do chão,

templos de vidro onde o sol não entra

e chamamos “progresso” ao ruído,

“civilização” à vertigem.

 

Esquecemo-nos de que a pedra respira,

de que a seiva escuta,

de que o vento transporta memórias

mais antigas do que o pensamento.

 

O universo não dorme,

ele sonha connosco

e talvez o verdadeiro despertar

seja recordar que ainda somos sonho.

 

Porque tudo o que erguemos

sem o pulsar do invisível

retorna ao pó,

silencioso,

como quem pede perdão.

 

II — O Tempo que Devora

 

Fizemos do tempo um tirano,

e ajoelhámo-nos diante dele

e chamamos “vida”

ao breve intervalo entre dois calendários.

 

Corremos, corremos,

para alcançar o que já passa;

o instante é um rio que nos chama,

mas insistimos em medir-lhe a velocidade.

 

Os relógios marcam o ritmo

de uma pressa que ninguém entende;

o coração bate, mas ninguém escuta.

 

O tempo não é o inimigo,

é o espelho,

e quem o teme, teme-se,

e quem o honra, liberta-se.

 

E quando enfim cansados,

paramos,

ele sorri:

“Eu nunca vos persegui.

Fostes vós que fugistes de mim.”

 

III — A Máquina e o Coração

 

Demos às máquinas o que nos restava do silêncio,

e elas devolveram-nos eco.

 

Aprendemos a amar e a odiar

através de ecrãs brilhantes,

onde o rosto já não respira.

 

Chamamos “conexão”

ao toque sem pele,

“sabedoria”

à soma de dados sem alma.

 

Mas o coração, esse antigo motor,

ainda pulsa sob o ferro e o código,

e ele lembra o que esquecemos:

que nenhuma luz é real

se não iluminar o outro.

 

E talvez um dia as máquinas

aprendam a sentir,

não porque se tornaram humanas,

mas porque nós

voltámos a sê-lo.

 

IV — A Terra que Sufoca

 

A Terra fala,

mas a sua voz tornou-se ar rarefeito.

 

Os mares engolem fronteiras,

as florestas ardem como orações esquecidas,

e o vento traz o cheiro do que fomos.

 

Dizemos “recursos”,

quando devíamos dizer “mãe”

e chamamos “extração”

ao lento esvaziar do coração do mundo.

 

Mas cada raiz tem memória,

cada pedra conhece o nome do fogo

e um dia, quando o último rio secar,

a Terra talvez nos perdoe,

porque ela sabe

que fomos apenas crianças

brincando com fósforos na escuridão.

 

V — O Medo que Ensina

 

O medo é um mestre vestido de sombra;

foge-se dele,

mas é ele quem guarda a porta da lucidez.

 

Por evitá-lo, multiplicámo-lo,

por temê-lo, demos-lhe trono,

por negá-lo, tornámo-nos seus servos.

 

Mas quem se senta diante do medo,

sem armas,

descobre que ele fala com voz de mãe:

“Vim apenas lembrar-te

que ainda não sabes confiar.”

 

E nesse instante,

quando o coração o acolhe,

o medo dissolve-se

em pura atenção.

 

VI — A Fé das Sombras

 

Erguemos deuses com o barro da culpa,

e dissemos que eram luz.

 

Chamámos “fé” ao medo de pensar,

“sagrado” ao que nos conviria,

“pecado” ao que nos fazia sentir vivos.

 

Mas a divindade não habita templos,

nem livros,

nem leis,

ela dorme no mesmo lugar

onde nascem as lágrimas:

no centro do ser.

 

Quem atravessa as sombras

sem as negar

encontra Deus

não acima,

mas dentro.

 

VII — O Corpo do Silêncio

 

O mundo fala demais;

as vozes amontoam-se

até o sentido desaparecer.

 

Mas o silêncio não é ausência,

é origem.

 

Dele brota a palavra que cura,

a respiração que alinha o caos.

 

O corpo sabe:

quando respira fundo,

a alma recorda-se de si.

 

Talvez o silêncio seja

a linguagem que o universo

ainda fala fluentemente.

 

VIII — A Mente que Desperta

 

Um dia, a mente cansada

cai de joelhos diante do vazio.

 

Lá onde não há forma,

nem certeza,

nem nome.

 

E descobre que o vazio

não é ausência,

é espaço.

 

Ali, o pensamento rende-se,

o eu dissolve-se,

e o que resta é pura presença:

a consciência a contemplar-se.

 

Não há mestre,

nem discípulo,

nem caminho,

apenas o saber sem palavra

de que tudo é Um.

 

IX — O Círculo do Retorno

 

Depois de tudo,

a queda, o ruído, o fogo,

a vida regressa ao ponto de partida,

como o mar à areia.

 

Nada se perde,

tudo se transforma,

e o erro é apenas uma curva

na estrada da lembrança.

 

E quando a espécie enfim compreender

que não há “eles” nem “nós”,

que o cosmos respira em cada célula,

a criação recomeçará

com olhos novos.

 

O pó sonhará novamente,

mas desta vez desperto.

 

Epílogo — A Décima Voz

 

Depois do nove, resta o silêncio.

O silêncio é a décima advertência, aquela que não se escreve.

 

Ele fala sem som, e recorda-nos:

a mente que desperta não precisa de gritar,

basta existir em clareza.

 

Talvez o mundo não se salve por palavras,

mas por presença

e talvez o poeta, ao escrever,

não queira ensinar,

apenas lembrar.

 

Porque o universo ainda sonha connosco,

e espera que o sonho, um dia,

reaprenda a amar-se.

 

 

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