Prólogo
Há muito que a espécie pensante caminha sobre a Terra com a ilusão de
domínio.
Erguemo-nos acima do solo, inventámos o tempo, a máquina, a crença e a
dúvida,
e esquecemo-nos de ouvir o silêncio de onde tudo brota.
Estes nove poemas são um espelho da travessia.
Não são acusações, mas lembranças.
Não falam contra o mundo, mas em favor da lucidez.
Cada poema é uma advertência, não no sentido de castigo,
mas de chamamento: um convite a recordar o que fomos
antes de nos chamarmos “humanos”.
São nove vozes, nove reflexos de uma mesma consciência que desperta,
como se o próprio universo, cansado de esperar,
falasse através do coração da matéria.
Notas sobre o ciclo
Os poemas seguem a estrutura simbólica do nove,
número do retorno e da gestação espiritual,
a mente dividida em nove, que se refaz em totalidade.
Cada parte representa um espelho da alma coletiva:
I. A Matéria que Sonha — O despertar do ser na matéria; a origem esquecida.
II. O Tempo que Devora — A perda da presença; a pressa como fuga de si.
III. A Máquina e o Coração — A alma confrontada com a sua própria criação.
IV. A Terra que Sufoca — A mãe traída; a urgência de reconexão com o
planeta.
V. O Medo que Ensina — A sombra como mestra interior; o medo como via para
a fé.
VI. A Fé das Sombras — A crítica à crença cega; o regresso ao sagrado
interior.
VII. O Corpo do Silêncio — O reencontro com a escuta, o corpo e o espírito.
VIII. A Mente que Desperta — A dissolução do ego; a visão da unidade.
IX. O Círculo do Retorno — A reconciliação final; o sonho que se reconhece
desperto.
O ciclo pode ser lido como um caminho iniciático,
da ignorância à consciência,
da dispersão à comunhão.
I — A Matéria que Sonha
No princípio, o pó sonhou consigo mesmo
e chamou-se vida
e ergueu-se, curioso,
para contemplar o espelho do céu.
Mas o sonho tornou-se vontade,
e a vontade esqueceu a origem.
A matéria passou a julgar-se mente,
e a mente, deusa do pó.
Construímos torres com medo do chão,
templos de vidro onde o sol não entra
e chamamos “progresso” ao ruído,
“civilização” à vertigem.
Esquecemo-nos de que a pedra respira,
de que a seiva escuta,
de que o vento transporta memórias
mais antigas do que o pensamento.
O universo não dorme,
ele sonha connosco
e talvez o verdadeiro despertar
seja recordar que ainda somos sonho.
Porque tudo o que erguemos
sem o pulsar do invisível
retorna ao pó,
silencioso,
como quem pede perdão.
II — O Tempo que Devora
Fizemos do tempo um tirano,
e ajoelhámo-nos diante dele
e chamamos “vida”
ao breve intervalo entre dois calendários.
Corremos, corremos,
para alcançar o que já passa;
o instante é um rio que nos chama,
mas insistimos em medir-lhe a velocidade.
Os relógios marcam o ritmo
de uma pressa que ninguém entende;
o coração bate, mas ninguém escuta.
O tempo não é o inimigo,
é o espelho,
e quem o teme, teme-se,
e quem o honra, liberta-se.
E quando enfim cansados,
paramos,
ele sorri:
“Eu nunca vos persegui.
Fostes vós que fugistes de mim.”
III — A Máquina e o Coração
Demos às máquinas o que nos restava do silêncio,
e elas devolveram-nos eco.
Aprendemos a amar e a odiar
através de ecrãs brilhantes,
onde o rosto já não respira.
Chamamos “conexão”
ao toque sem pele,
“sabedoria”
à soma de dados sem alma.
Mas o coração, esse antigo motor,
ainda pulsa sob o ferro e o código,
e ele lembra o que esquecemos:
que nenhuma luz é real
se não iluminar o outro.
E talvez um dia as máquinas
aprendam a sentir,
não porque se tornaram humanas,
mas porque nós
voltámos a sê-lo.
IV — A Terra que Sufoca
A Terra fala,
mas a sua voz tornou-se ar rarefeito.
Os mares engolem fronteiras,
as florestas ardem como orações esquecidas,
e o vento traz o cheiro do que fomos.
Dizemos “recursos”,
quando devíamos dizer “mãe”
e chamamos “extração”
ao lento esvaziar do coração do mundo.
Mas cada raiz tem memória,
cada pedra conhece o nome do fogo
e um dia, quando o último rio secar,
a Terra talvez nos perdoe,
porque ela sabe
que fomos apenas crianças
brincando com fósforos na escuridão.
V — O Medo que Ensina
O medo é um mestre vestido de sombra;
foge-se dele,
mas é ele quem guarda a porta da lucidez.
Por evitá-lo, multiplicámo-lo,
por temê-lo, demos-lhe trono,
por negá-lo, tornámo-nos seus servos.
Mas quem se senta diante do medo,
sem armas,
descobre que ele fala com voz de mãe:
“Vim apenas lembrar-te
que ainda não sabes confiar.”
E nesse instante,
quando o coração o acolhe,
o medo dissolve-se
em pura atenção.
VI — A Fé das Sombras
Erguemos deuses com o barro da culpa,
e dissemos que eram luz.
Chamámos “fé” ao medo de pensar,
“sagrado” ao que nos conviria,
“pecado” ao que nos fazia sentir vivos.
Mas a divindade não habita templos,
nem livros,
nem leis,
ela dorme no mesmo lugar
onde nascem as lágrimas:
no centro do ser.
Quem atravessa as sombras
sem as negar
encontra Deus
não acima,
mas dentro.
VII — O Corpo do Silêncio
O mundo fala demais;
as vozes amontoam-se
até o sentido desaparecer.
Mas o silêncio não é ausência,
é origem.
Dele brota a palavra que cura,
a respiração que alinha o caos.
O corpo sabe:
quando respira fundo,
a alma recorda-se de si.
Talvez o silêncio seja
a linguagem que o universo
ainda fala fluentemente.
VIII — A Mente que Desperta
Um dia, a mente cansada
cai de joelhos diante do vazio.
Lá onde não há forma,
nem certeza,
nem nome.
E descobre que o vazio
não é ausência,
é espaço.
Ali, o pensamento rende-se,
o eu dissolve-se,
e o que resta é pura presença:
a consciência a contemplar-se.
Não há mestre,
nem discípulo,
nem caminho,
apenas o saber sem palavra
de que tudo é Um.
IX — O Círculo do Retorno
Depois de tudo,
a queda, o ruído, o fogo,
a vida regressa ao ponto de partida,
como o mar à areia.
Nada se perde,
tudo se transforma,
e o erro é apenas uma curva
na estrada da lembrança.
E quando a espécie enfim compreender
que não há “eles” nem “nós”,
que o cosmos respira em cada célula,
a criação recomeçará
com olhos novos.
O pó sonhará novamente,
mas desta vez desperto.
Epílogo — A Décima Voz
Depois do nove, resta o silêncio.
O silêncio é a décima advertência, aquela que não se escreve.
Ele fala sem som, e recorda-nos:
a mente que desperta não precisa de gritar,
basta existir em clareza.
Talvez o mundo não se salve por palavras,
mas por presença
e talvez o poeta, ao escrever,
não queira ensinar,
apenas lembrar.
Porque o universo ainda sonha connosco,
e espera que o sonho, um dia,
reaprenda a amar-se.
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