Seguidores

sábado, 12 de julho de 2025

Música de sangue e céu / J.M.J.

Não herdei apenas gestos,

nem o tom da voz ou o perfil das mãos.

Herdei vibração,

uma frequência antiga

que ressoa entre o peito e o tempo.

 

O meu pai,

mãos sobre o fagote,

respirava antes de tocar

como quem pedia licença ao silêncio

e eu, menino no escuro da plateia vazia,

sabia que aquilo não era apenas som:

era o universo a afinar-se.

 

As madeiras, os metais, os arcos,

uma respiração cósmica

em pleno ensaio.

Ali, sem saber, aprendi

que a emoção é uma corda esticada

entre o visível e o mistério.

 

Hoje, ouço menos.

A casa está mais cheia de silêncios

e de memórias,

mas a música continua a habitar-me,

mesmo sem tocar.

 

E quando o meu filho,

clarinete nas mãos,

faz soar um mundo novo,

sem a melodia de antes,

mas com uma precisão que toca

a matemática dos astros,

eu reconheço-o,

é o mesmo sopro,

o mesmo céu escondido nos pulmões.

 

Não há geração que não invente

uma nova forma de chamar o sagrado,

mas há algo que se mantém:

a vibração que nos atravessa

quando o som é mais que som,

quando é sangue,

quando é céu,

quando é memória acesa

entre o agora

e o que nunca deixou de soar.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário