Não herdei apenas gestos,
nem o tom da voz ou o perfil das mãos.
Herdei vibração,
uma frequência antiga
que ressoa entre o peito e o tempo.
O meu pai,
mãos sobre o fagote,
respirava antes de tocar
como quem pedia licença ao silêncio
e eu, menino no escuro da plateia vazia,
sabia que aquilo não era apenas som:
era o universo a afinar-se.
As madeiras, os metais, os arcos,
uma respiração cósmica
em pleno ensaio.
Ali, sem saber, aprendi
que a emoção é uma corda esticada
entre o visível e o mistério.
Hoje, ouço menos.
A casa está mais cheia de silêncios
e de memórias,
mas a música continua a habitar-me,
mesmo sem tocar.
E quando o meu filho,
clarinete nas mãos,
faz soar um mundo novo,
sem a melodia de antes,
mas com uma precisão que toca
a matemática dos astros,
eu reconheço-o,
é o mesmo sopro,
o mesmo céu escondido nos pulmões.
Não há geração que não invente
uma nova forma de chamar o sagrado,
mas há algo que se mantém:
a vibração que nos atravessa
quando o som é mais que som,
quando é sangue,
quando é céu,
quando é memória acesa
entre o agora
e o que nunca deixou de soar.
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