Introdução
Estas sete cartas-poemas nascem do
silêncio onde o coração se demora. São mensagens íntimas dirigidas a um
"tu" simbólico, presença ausente, ainda por vir, ou talvez
eternamente pressentida. Não se escrevem com a urgência da posse, mas com a
delicadeza de quem sabe que há encontros que se preparam por dentro, como quem
cultiva terra fértil à espera da chuva.
Neste ofício lento da espera, a
linguagem torna-se abrigo, oração e gesto. Através de cada poema, desenha-se um
caminho de reconhecimento, onde a vulnerabilidade é força e o desejo é semente
de um amor possível, aquele que não se limita ao toque, mas que exige alma
desperta, escuta profunda e entrega sem reservas.
Que estas palavras possam tocar
quem também espera, com fé, com sede e com esperança, por um amor que saiba
escutar o som subtil da existência partilhada.
Ofício da Espera (1)
Primeira carta ao amor que ainda
vive
Não te conheço, e já te espero há
décadas,
não por capricho, nem carência,
mas porque há em mim um lugar que
nunca cedeu à desistência.
Dizem que o amor é encontro,
Talvez,
mas há também amores que são
chamamento,
um nome murmurado no escuro
que só outro coração saberá
responder.
Não quero promessas, nem juventude,
quero o toque de uma presença
inteira,
a coragem de um corpo que não tema
as rugas,
nem o silêncio,
nem as sombras que o tempo foi
moldando em nós.
Se vieres, não venhas perfeito,
vem verdadeiro,
com as tuas falhas e histórias,
com a tua capacidade de permanecer
mesmo quando o mundo
se distrai com ruídos e pressas.
Aqui estarei,
não como quem aguarda o impossível,
mas como quem cuida do altar onde a
chama não se apagou.
Ofício da Espera (2)
Segunda carta ao amor que não
esqueço
Hoje não te escrevo por saudade,
mas por respeito.
Respeito pela tua ausência,
que me ensinou a olhar mais
devagar,
a falar menos,
a ouvir o que o silêncio diz quando
já ninguém fala.
Não me tornei amargo,
a vida tentou, sim,
mas deixei que os dias me gastassem
por dentro
sem me quebrarem o lume.
Ainda te falo, às vezes,
quando a noite é funda
e o corpo se deita com mais
perguntas do que cansaço,
tu não respondes,
mas há um gesto no ar,
uma memória antiga
ou talvez um pressentimento.
Não sei onde estás,
nem se existes como penso,
mas há um lugar em mim que continua
teu
e não te guarda como ferida,
mas como promessa:
a de que ainda é possível amar com
verdade,
sem urgência,
sem artifício.
Se vieres, saberei,
mas se não vieres, serei, ainda
assim,
alguém que esperou por amor
como quem vela o nascer do dia
com os olhos já gastos,
mas intactos de esperança.
Ofício da Espera (3)
Terceira carta àquela que pressinto
Quando penso em ti,
não imagino gargalhadas leves
nem promessas lançadas ao vento.
Imagino um rosto sereno,
que já chorou mais do que disse,
e por isso sabe ouvir com os olhos.
Não és alegria
nem tristeza,
és chão.
Trazes nos gestos uma espécie de
silêncio bom,
daqueles que só quem sofreu entende.
Não perguntas logo “o que tens?”,
nem tentas curar com receitas,
ficas ali,
presente,
real,
atento.
Sinto que, se vieres, não será com
festa,
mas com um cuidado raro,
como quem chega ao quarto de um
ferido e sussurra:
“Não temas, conheço esta dor,
não a tua, mas a minha,
e por isso posso caminhar contigo.”
És talvez
o outro lado da minha esperança,
não vens salvar-me,
mas lembrar-me
de que ainda vale a pena ser
inteiro
na presença de alguém.
Ofício da Espera (4)
Quarta carta ao toque que ainda não
recebi
Penso às vezes em como será o teu
toque.
Não falo da pele apenas,
mas daquele gesto que pousa
sem ferir,
sem pedir,
sem urgência.
Um toque que saiba onde não deve
tocar,
e que encontre os lugares
onde até eu esqueci que existia
abrigo.
Imagino-te a passar os dedos pelo
meu silêncio,
como quem lê uma carta antiga,
com respeito pelos sulcos do tempo
e pelas frases que ficaram por
dizer.
Não vens para exigir que eu sare,
mas para dizer:
"Se quiseres, fico ao teu lado
enquanto o tempo faz o que
sabe."
Se um dia me tocares,
quero que sintas a minha entrega
sem palavras,
porque em mim ainda vive
a fé no afeto que não mede,
no gesto que se dá
como se dar fosse respirar.
E se nunca chegares,
deixa-me ao menos escrever-te,
pois ao escrever,
sinto-te quase,
e o quase, às vezes,
é a forma que o amor encontra
para não morrer.
Ofício da Espera (5)
Quinta carta sobre o desejo que o
tempo não apagou
Não sei quando foi que deixei de
procurar-te
como quem corre,
e passei a guardar-te
como quem cuida de uma luz pequena,
mas viva.
O tempo passou por mim,
e por ti, talvez,
mas não levou contigo
a forma como te imagino:
não perfeita,
mas possível,
não resposta,
mas presença.
O desejo mudou.
Já não tem o ímpeto das urgências,
tem agora o ritmo do que aprendeu a
esperar
sem se negar.
É um desejo que não arde,
mas aquece,
que não grita,
mas permanece.
E há dias em que esse desejo me
visita
com imagens tuas que nunca vi,
com palavras tuas que nunca ouvi,
mas que reconheço
como se viessem de mim
e fossem para mim,
ao mesmo tempo.
Não me importa se virás,
importa-me que existas,
ainda que só no plano do possível,
ainda que feito de intuição e
silêncio.
Porque há em mim uma fidelidade
a tudo o que é verdadeiro,
mesmo que nunca se cumpra.
Ofício da Espera (6)
Sexta carta: quero ser abrigo
Falo-te tanto do que espero,
mas hoje quero dizer-te o que sou.
Sou também abrigo,
não apenas quem deseja ser visto,
mas quem deseja ver-te, inteiro,
com as tuas fragilidades,
as tuas sombras,
os teus dias de silêncio.
Não tenho todas as palavras certas,
nem um amor embalado por promessas,
mas tenho a escuta
e o tempo,
aquele tempo que não foge
quando o outro tropeça.
Quero conhecer os teus silêncios
sem medo,
e não fugir das tuas ausências.
Quero amar-te também nas pausas,
quando tudo em ti se fecha um pouco
e esperas que ninguém repare.
Eu reparo,
mas fico,
porque amar não é invadir,
é permanecer.
Se chegares,
serás mais do que resposta,
serás espelho daquilo que aprendi a
dar
quando deixei de exigir.
E se nunca vieres,
saibas que este amor que preparo
para ti
não será desperdiçado,
ele há de encontrar um gesto,
um corpo,
ou o mundo,
e tocar.
Porque há esperas que são caminhos
e há amores que nascem
da fidelidade à esperança.
Ofício da Espera (7)
Sétima carta: o sonho do encontro
Hoje, sonhei que finalmente contigo
me cruzei,
mas não foi um encontro ruidoso,
nem cheio de promessas,
foi um instante simples,
mas tão inteiro
que o meu corpo despertou com o
calor
de quem já foi tocado.
Não disseste o meu nome,
mas reconheci-me no teu olhar
e no modo como os teus gestos não
tinham pressa.
Falámos pouco,
como quem sabe que as palavras vêm
depois.
Foi o silêncio que disse:
"cheguei,
e tu também".
Acordei sem dor,
sem urgência,
apenas com a memória de um instante
que talvez nunca tenha existido,
ou talvez sim,
noutro tempo que não este.
E desde então,
tenho caminhado com mais leveza,
como quem sabe
que até o sonho, às vezes,
é uma forma de presença.
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