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domingo, 3 de agosto de 2025

O Ouro e o Sangue / J.M.J.

Dizem:

foram os portugueses que inventaram o tráfico,

como se a História nascesse no Tejo

e não sangrasse já nas margens do Nilo,

nas fornalhas da Mesopotâmia,

nos impérios que ergueram pirâmides com costas alheias.

 

Antes de nós,

reis divinos arrastavam vencidos como oferenda,

e, nas selvas das Américas,

corpos serviam de tributo aos deuses sedentos.

 

Sim, os navios partiram de Lisboa,

mas carregavam pactos com reinos africanos

que vendiam os seus próprios irmãos

por espingardas e espelhos.

 

E sim, foi negócio,

como tudo o que o ouro toca.

 

Hoje,

enquanto a indignação dança em reels e hashtags,

quem chora pelos 40 milhões ainda presos?

 

Quarenta milhões:

almas cativas por dívidas que não contraíram,

por contratos que nunca assinaram,

por nascimentos que as condenaram a servir.

 

Não nas carrancas dos navios,

mas nas sombras do presente,

onde a escravatura vive:

discreta, eficiente, lucrativa.

 

Enquanto a memória é julgada com dedos indignados,

o agora continua a vender carne humana

em nome do conforto, da fé, do costume, da economia.

 

Há quem prefira chorar o passado

a enfrentar a vergonha de o repetir.

 

Pelo menino que cose o teu sapato

numa cave sem nome na Ásia?

 

Pelo agricultor que colhe os teus morangos,

com papéis falsos e pulmões a arder?

 

Pela mulher filipina,

trancada num apartamento do Golfo,

presa a um contrato que nunca leu?

 

Pelas meninas vendidas a um velho no Afeganistão?

 

Pelos que escavam cobalto no Congo,

para que o teu telefone brilhe mais depressa?

 

Pela rapariga moldava,

que sorri nas montras de Berlim,

com os joelhos gastos de fingir prazer?

 

A escravatura não acabou,

apenas aprendeu a disfarçar-se.

 

Hoje, veste farda de multinacional,

fala em contratos e eficiência,

e sorri nos anúncios de Natal.

 

Continuamos a comprar o barato

com o sangue do invisível.

 

E a História

serve de arma quando convém,

mas raramente de espelho.

 

Ninguém inventou a escravatura.

Todos a carregámos.

E muitos ainda a alimentam,

de olhos abertos,

com o coração desligado.

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