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domingo, 3 de agosto de 2025

Manual do Silêncio / J.M.J.

A liberdade não cai de repente.

Desce,

em degraus suaves,

por escadas de boas intenções.

 

Não é tomada com espadas,

mas com decretos,

normas

e o aplauso dos distraídos.

 

Vem disfarçada de ordem,

de moral,

de protecção,

e ergue muros enquanto sussurra:

“É para o teu bem.”

 

E os que ainda falam, falam,

mas já não dizem,

há palavras que se tornam suspeitas,

ideias que deixam de caber nos ouvidos públicos,

sentenças que se calam antes de nascer.

 

Não há prisão visível,

mas um conforto vigilante,

um contrato de silêncio assinado a prestações,

enquanto os que protestam

são chamados de extremos,

e os que desconfiam,

acusados de ingratidão.

 

As grades são polidas,

transparentes,

quase belas,

e por isso, aceites.

 

A liberdade morre assim:

não com um grito,

mas com um encolher de ombros.

 

E cada vez que calas uma dúvida,

rejeitas uma pergunta,

aceitas sem saber porquê,

cortas uma fatia de ti

e dás ao carrasco que veste fato.

 

Até que um dia

já não sabes o que foste,

nem o que poderias ter dito.

  

(Este poema nasce da inquietação perante um fenómeno antigo, mas cada vez mais sofisticado: o desmantelamento progressivo da liberdade em nome da ordem, da segurança ou da moral. Inspirado numa ideia frequentemente atribuída a Friedrich Hayek,  a de que a liberdade raramente se perde de uma só vez, mas sim aos poucos, como se corta salame, “Manual do Silêncio” procura alertar para o modo como, muitas vezes com o nosso consentimento tácito, se vão apagando espaços de expressão, pensamento e dissidência.

Não vivemos tempos de grilhões visíveis, mas de consensos vigiados e de ruídos abafados com aplausos. O perigo, hoje, é o silêncio que parece normal.)


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