Estes poemas foram inspirados nos apócrifos e evangelhos gnósticos do Novo Testamento, textos que, por razões históricas, foram esquecidos, excluídos ou pouco conhecidos. Cada poema busca revelar a sabedoria, o mistério e a dimensão espiritual desses escritos. Eles procuram dar voz àquilo que foi silenciado ou marginalizado, oferecendo uma visão poética do conhecimento e da fé primitiva que ultrapassa as narrativas oficiais e convida à reflexão sobre o papel do humano e do divino.
Evangelho de Tomé
Não há templo onde a verdade repouse,
nem altar capaz de conter a palavra.
Ela nasce no sopro do silêncio,
no coração que ousa perguntar.
Dizem que o Reino está espalhado pela terra,
mas os olhos cegos não o veem.
É como fogo escondido em cinzas,
como tesouro perdido em campo esquecido.
“Conhece-te a ti mesmo” — ecoa a voz,
não como filosofia, mas como chave:
quem descobre a centelha dentro de si
encontra o Deus que nunca esteve ausente.
Não é o grito das multidões
que abre o mistério,
mas a escuta atenta
do segredo que arde no íntimo.
E aquele que unir o céu e a terra,
o dentro e o fora,
o princípio e o fim,
conhecerá o Nome escondido
que não precisa ser escrito.
Evangelho de Pedro
O madeiro ergue-se contra o céu,
e o sangue corre como rio antigo.
Não é só a terra que treme,
o sol recua, a lua se cobre de sombra,
o cosmos inteiro se cala.
No silêncio, a morte veste-se de poder,
mas não é dona do último instante.
Pois na madrugada sem cor
abre-se a pedra do sepulcro
e o impossível atravessa o véu.
Três homens saem,
e a cruz caminha atrás deles,
falando como testemunha viva:
a madeira já não pesa,
é sinal de vitória.
Soldados caem como folhas secas,
e os reis da terra nada podem dizer.
Pois a verdade não pertence aos poderosos,
nem aos sacerdotes, nem às muralhas da lei,
mas ao corpo que ressuscita,
à vida que se ergue do pó.
O evangelho não é história fria,
mas visão que arde:
a cruz que caminha,
a morte que se curva,
o céu que se abre em silêncio
para deixar passar a luz.
Evangelho de Filipe
O mundo fala de união
mas não conhece o mistério.
Homem e mulher se encontram,
não no desejo que consome,
mas na chama que revela.
Pois o matrimónio verdadeiro
não é da carne apenas,
mas do espírito que se reconhece
no espelho do outro.
O Cristo é o Noivo,
a alma é a Noiva,
e no abraço secreto
nasce o conhecimento.
Não se entra no Reino
pela lei que acusa,
nem pelo templo de pedra,
mas pelo beijo sagrado,
onde a respiração torna-se verbo
e o silêncio, revelação.
A fé sem amor é sombra.
A lei sem graça é prisão.
Só o coração que se entrega
descobre o tesouro oculto
que não pode ser roubado.
Aqui, no mistério do amor,
a morte é esquecida,
e o homem volta a ser uno
como no princípio.
Protoevangelho de Tiago
Antes do verbo nascer,
já se preparava o vaso.
Ana chorava sua esterilidade,
e do silêncio de Deus
brotou a promessa:
um ventre outrora fechado
abria-se como aurora.
Maria, menina de luz,
tecida no seio da esperança,
cresceu não para si,
mas para o Mistério.
No templo, entre cânticos e véus,
seu coração já sabia
o que o mundo ignorava:
a pureza não é ausência,
mas presença plena
do infinito no finito.
As pedras a viram brincar,
os anjos a viram orar,
e o tempo aguardava
que o tempo se cumprisse.
O Protoevangelho guarda,
como quem vela um segredo,
a infância da Mãe
que se tornaria porta do Eterno.
Não é lenda apenas,
mas raiz de ternura,
onde o divino se preparava
em silêncio materno.
Evangelho da Infância de Tomé
O menino brincava na areia,
moldando pardais com as mãos.
Mas ao sopro do seu hálito
a argila ganhou asas,
e o jogo tornou-se vida.
Os vizinhos murmuravam:
“Que poder é este
numa criança tão pequena?”
Mas Jesus, ainda inocente,
caminhava entre o assombro e o temor.
Se irritado, fazia calar,
se ofendido, feria com palavras de fogo.
Era humano demais,
era divino demais,
e ninguém sabia compreender.
Entre os mestres do templo,
sua voz cortava como lâmina:
sabedoria que não se aprende,
mas nasce já acesa,
como chama eterna.
O Evangelho da Infância de Tomé
não mostra apenas o doce menino,
mas o mistério inquietante
do Deus que se fez carne:
força sem medida
em corpo de criança,
luz que ainda não cabia no mundo.
O Pastor de Hermas
Um homem caminha cansado,
cativo do peso das suas culpas.
Eis que surge o Pastor,
envolto em branco resplandecente,
com voz de rio que nunca seca.
“Arrepende-te”, diz o Pastor,
“pois as portas da Vida
ainda estão abertas.
Nenhum muro é mais alto
que a Misericórdia.”
Hermas vê torres erguidas,
a Igreja como pedra viva,
cada coração sendo tijolo,
cada lágrima, argamassa de luz.
As parábolas fluem como rios:
a árvore ressequida pode florir,
a ovelha perdida pode voltar,
o pecador pode renascer.
Mas também vem o aviso:
quem fecha o ouvido ao chamamento
cava sua própria ruína.
A graça é abundante,
mas o tempo é breve.
O Pastor de Hermas
não canta milagres de glória,
nem batalhas dos céus.
Ele fala da alma frágil,
do recomeço possível,
da Igreja que cresce
como torre voltada ao infinito.
E sua voz ecoa ainda,
entre os que duvidam,
entre os que caem e se levantam:
“Não temas a queda,
mas sim a dureza de não querer erguer-se.”
O Apocalipse de Pedro
Pedro ergue os olhos
e o véu da terra se rasga.
O Senhor leva-o pela mão
e mostra-lhe os lugares ocultos,
onde as almas colhem o fruto
das suas próprias obras.
No alto, o Céu resplandece:
rios de leite e mel,
jardins de paz sem sombra,
vozes que cantam como auroras.
Ali, os justos são como crianças
sem medo,
bebendo da fonte eterna.
Mas logo, a visão desce,
e o silêncio se torna grito.
O inferno abre a sua boca:
lá estão os arrogantes,
pendurados pelas línguas;
os corruptos, mergulhados no fogo;
os violentos, devorados pela própria fúria.
Não é Deus que os lança,
é a verdade das suas vidas
que os consome.
O mal que criaram
torna-se a sua prisão.
Pedro treme diante do abismo.
Cristo olha e diz:
“Não temas,
pois a justiça é espelho da misericórdia.
O Céu e o Inferno
nascem do mesmo coração humano.
Quem ama, sobe;
quem devora, cai.”
E assim o Apóstolo vê
que o juízo não é tirania,
mas colheita inevitável:
a semente floresce
segundo a terra onde foi lançada.
E a voz do Senhor ecoa ainda:
“Dizei-lhes, Pedro,
que a vida é caminho estreito,
e que toda escolha
constrói eternidade.”
Evangelho de Maria
Ela ouve o silêncio onde os outros escutam
apenas o eco de seus próprios medos.
Maria, a que segue sem curvar-se,
conhece os mistérios que o mundo oculta
sob véus de tradição e poder.
Os discípulos se perguntam,
uns tremem, outros duvidam:
“Quem guiará agora, quando Ele partiu?”
Mas Maria responde com olhar sereno:
“Quem busca o Reino deve primeiro
descobrir o que habita dentro de si.”
Não é glória que procura,
nem título que convence.
É o conhecimento silencioso,
o sopro divino que desperta a alma.
“Os demônios da dúvida e do medo
não se vencem com punhos nem palavras,
mas com coragem interior,
com fé que questiona,
com coração desperto.”
Ela ensina que o caminho da alma
não se mede em leis externas,
mas na capacidade de ouvir a Verdade,
mesmo quando ela contraria
o que todos acreditam.
Maria Madalena caminha entre sombras e luz,
portando a chama que não se apaga:
sua sabedoria é rio subterrâneo,
seu amor, revolução silenciosa,
e sua voz, legado
para aqueles que se atrevem
a ouvir além do óbvio.
Evangelho de Judas
Judas caminha entre sombras,
não como vilão,
mas como portador do mistério
que poucos ousam compreender.
Enquanto os outros temem e acusam,
ele conhece o segredo do Reino:
às vezes é preciso transgredir,
romper correntes,
para que o plano se cumpra.
O que parece traição
é visão de quem enxerga além do óbvio.
A mão que entrega
não destrói, mas revela;
o gesto que assusta
é ponte entre o humano e o divino.
Jesus sorri, silencioso,
pois sabe que o destino se dobra
àqueles que conhecem os caminhos ocultos.
O verdadeiro discípulo
não se mede pela aparência
mas pelo entendimento do Mistério.
O Evangelho de Judas lembra:
nem todos os que caminham na sombra
são perdidos.
E nem toda obediência visível
é verdadeira fé.
Às vezes, é na transgressão consciente
que a luz se manifesta.
Evangelho de Nicodemos
O juiz olha, perplexo,
para o homem que não teme o peso da cruz.
Pilatos pergunta, mas já sabe:
a verdade não se dobra
às leis da terra nem à opinião da multidão.
O céu treme, o sol se escurece,
e a morte parece ganhar voz própria.
Mas há algo além do medo,
algo que nem pedra do sepulcro consegue aprisionar:
a força de quem entrega a vida
e se mantém íntegro até o último suspiro.
Nas sombras do Hades,
Jesus desce, não como prisioneiro,
mas como libertador.
Cada alma que sofre encontra caminho,
cada grito de injustiça ecoa
como sussurro de esperança.
Nicodemos observa, aprende,
a justiça humana é frágil,
mas o juízo divino é fiel.
A Paixão não é apenas morte,
é revelação do poder invisível
que transforma o medo em redenção,
o silêncio em verdade,
a traição em cumprimento de plano.
Evangelho de Bartolomeu
O caminho se estende sob o peso do silêncio,
os passos de Jesus ecoam sobre a terra cansada.
Bartolomeu observa, atento,
o que os outros não conseguem ver:
não apenas dor,
mas a luz que atravessa a sombra.
Os discípulos tremem,
mas Ele fala de coragem,
de confiança no plano que não se revela
a olhos fechados pelo medo.
Cada gesto, cada palavra,
não é apenas narrativa,
mas símbolo de entrega e mistério:
a cruz não pesa para quem carrega o mundo no coração,
o sofrimento não mata a verdade que pulsa.
Bartolomeu compreende,
não pela lei ou pelo medo,
mas pela chama que arde dentro do Mestre:
a fé verdadeira não é cega,
é consciente, lúcida,
e escolhe amar mesmo na dor,
entender mesmo na incerteza,
seguir mesmo no silêncio dos homens.
Evangelho de Estevão
Na infância, o menino caminha entre sombras e luz,
cada passo já carrega o sopro do divino.
Seus olhos veem o invisível,
suas mãos tocam o impossível.
Os mestres se maravilham,
os vizinhos murmuram,
mas Ele não busca aplauso nem glória,
apenas manifesta o que já habita no coração do mundo.
Pequenos milagres acontecem sem alarde,
água se transforma, objetos obedecem ao toque da
verdade,
e o ar se curva diante da presença que não se
compreende.
Estevão observa, aprende a interpretar os sinais:
não é força que move,
mas consciência do que é eterno no efêmero.
E cada gesto, cada suspiro da infância divina,
prepara o caminho para os acontecimentos maiores,
que ainda estão por revelar-se.
Evangelho da Verdade
No início, a ignorância cobria o coração dos homens
como sombra que se estende sobre a luz.
O mundo vagueava em busca de si mesmo,
mas não sabia reconhecer a semente do divino.
O Conhecimento surge, silencioso,
não como lei nem dogma,
mas como revelação interna:
a Verdade que desperta
aquele que ousa olhar para dentro.
A ilusão dissolve-se aos poucos,
como névoa ao amanhecer,
e a alma percebe
que o erro não é punição,
mas ausência de memória
daquilo que sempre esteve presente.
O Evangelho da Verdade ensina:
a salvação não é presente do céu,
mas retorno à consciência,
ao reconhecimento do que somos
e do que nunca deixou de ser.
Entre o esquecimento e a lembrança,
entre a escuridão e a centelha,
o homem encontra o caminho
não fora, mas dentro de si,
onde o Verbo nunca deixou de sussurrar.
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