Antes de sermos nome,
antes de sermos corpo ou palavra,
éramos fusão.
Uma célula perdida
no silêncio húmido do tempo
acolheu o estranho.
Não devorou,
não destruiu,
abriu espaço.
E ali,
na penumbra de uma membrana,
começou o fogo.
Uma bactéria,
livre, errante, solitária,
ofereceu energia.
Em troca de abrigo,
fez-se casa dentro da casa,
como se dissesse:
«Vivo em ti, se me deixares ser.»
E assim nasceu o ritmo,
a combustão invisível
que ainda hoje nos move.
As mitocôndrias,
essas avós sem rosto,
que queimam oxigénio e memória
em cada célula nossa,
trazem consigo a história
de quando a vida decidiu confiar,
de quando o medo cedeu à aliança.
E o que podia ter sido fim
foi princípio,
expansão,
e canto.
Nós
somos esse pacto que perdura,
descendentes da aceitação,
da inteligência que se curva
para incluir o outro.
Há mais sabedoria numa célula
do que em mil impérios.
O cosmos lembrou-nos ali,
na aurora da carne:
evoluir
é abrir-se,
e não dominar.
(Este poema inspira-se no processo evolutivo da
endossimbiose, a aliança primitiva entre uma célula ancestral e uma bactéria
que deu origem às mitocôndrias, estruturas vitais que ainda hoje fornecem
energia a cada célula dos nossos corpos. Através desta fusão inesperada, a vida
deu um salto de complexidade e cooperação. O poema celebra esse gesto inaugural
de confiança, como metáfora para uma sabedoria mais profunda: a verdadeira
evolução acontece quando abrimos espaço para o outro dentro de nós.)
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