Não é só o fósforo,
nem o louco com chama no bolso,
nem o castigo leve que o leva a repetir.
É
o silêncio
das mãos que largaram o campo,
da enxada caída ao lado da herança por discutir,
da aldeia que se esqueceu do nome das árvores.
É
o mapa rasgado em parcelas órfãs,
terras divididas em mil pedaços
como pão velho,
que já ninguém quer repartir.
É
o mercado que planta eucaliptos
como quem espalha gasolina verde
num corpo moribundo,
chamando floresta ao lucro rápido.
É
o Estado que fala em reformas
com a boca cheia de cinzas,
mas não conhece os caminhos entre muros de pedra,
nem os rebanhos que outrora limavam o mato.
Não
é só o fogo posto,
é o país posto a jeito.
Quando
a terra perde nome,
torna-se inflamável,
quando ninguém a ama,
torna-se tragável.
Arde
o que se esquece,
o que se abandona,
o que se vendeu barato
por não caber no sonho urbano.
Mas
um dia,
quem sabe,
se alguém voltar a lavar as mãos de terra,
a acordar os baldios,
a fazer do mato mosaico,
e da política um cuidado,
então
talvez o verão
deixe de ser um funeral anual
e a terra volte
a ser mais húmus que fumo.
(Este poema nasce da dor cíclica dos incêndios em Portugal, que
todos os verões consomem não só a terra, mas também a memória, o território e o
sentido de pertença. Não é apenas o fogo posto que arde os montes, é o abandono
da agricultura tradicional, a desertificação do interior, a plantação
desordenada de espécies inflamáveis como o eucalipto, a fragmentação da
propriedade e a falta de planeamento territorial.
Enquanto se discute a culpa dos incendiários (culpa real, mas muitas vezes
usada como distração política), ignora-se que o país foi largado ao mato,
literalmente. Sem incentivos reais ao cuidado da terra, sem políticas eficazes
de mosaico florestal, e sem resolver o emaranhado jurídico da propriedade
rústica, continuará a arder o que ninguém ama ou cuida.
Este poema também presta homenagem aos bombeiros portugueses, que com coragem,
dedicação e escassos meios enfrentam incêndios cada vez mais violentos. A falta
crónica de investimento em aeronaves, vigilância e recursos impede muitas vezes
uma resposta eficaz em áreas inacessíveis, onde só o ar pode chegar.
Que este poema sirva, ao menos, para não esquecermos.)
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