Seguidores

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Terra Queimada Não Arde Sozinha / J.M.J.

Não é só o fósforo,
nem o louco com chama no bolso,
nem o castigo leve que o leva a repetir.

É o silêncio
das mãos que largaram o campo,
da enxada caída ao lado da herança por discutir,
da aldeia que se esqueceu do nome das árvores.

É o mapa rasgado em parcelas órfãs,
terras divididas em mil pedaços
como pão velho,
que já ninguém quer repartir.

É o mercado que planta eucaliptos
como quem espalha gasolina verde
num corpo moribundo,
chamando floresta ao lucro rápido.

É o Estado que fala em reformas
com a boca cheia de cinzas,
mas não conhece os caminhos entre muros de pedra,
nem os rebanhos que outrora limavam o mato.

Não é só o fogo posto,
é o país posto a jeito.

Quando a terra perde nome,
torna-se inflamável,
quando ninguém a ama,
torna-se tragável.

Arde o que se esquece,
o que se abandona,
o que se vendeu barato
por não caber no sonho urbano.

Mas um dia,
quem sabe,
se alguém voltar a lavar as mãos de terra,
a acordar os baldios,
a fazer do mato mosaico,
e da política um cuidado,

então talvez o verão
deixe de ser um funeral anual
e a terra volte
a ser mais húmus que fumo.

 

(Este poema nasce da dor cíclica dos incêndios em Portugal, que todos os verões consomem não só a terra, mas também a memória, o território e o sentido de pertença. Não é apenas o fogo posto que arde os montes, é o abandono da agricultura tradicional, a desertificação do interior, a plantação desordenada de espécies inflamáveis como o eucalipto, a fragmentação da propriedade e a falta de planeamento territorial.
Enquanto se discute a culpa dos incendiários (culpa real, mas muitas vezes usada como distração política), ignora-se que o país foi largado ao mato, literalmente. Sem incentivos reais ao cuidado da terra, sem políticas eficazes de mosaico florestal, e sem resolver o emaranhado jurídico da propriedade rústica, continuará a arder o que ninguém ama ou cuida.
Este poema também presta homenagem aos bombeiros portugueses, que com coragem, dedicação e escassos meios enfrentam incêndios cada vez mais violentos. A falta crónica de investimento em aeronaves, vigilância e recursos impede muitas vezes uma resposta eficaz em áreas inacessíveis, onde só o ar pode chegar.
Que este poema sirva, ao menos, para não esquecermos.)


domingo, 3 de agosto de 2025

O Viajante do Gelo / J.M.J.

Dormia antes do bronze,

da palavra,

da pedra saber que era templo.

 

Nas entranhas geladas do mundo,

uma semente sem flor nem memória

esperava, sem pedir tempo.

 

Nem sonhava.

Sabia apenas ser silêncio

em suspensão perfeita,

entre o nada e o talvez.

 

Quarenta e seis mil invernos

sem se mover um gesto,

dar por extintos os tigres,

saber que os homens viriam

para queimar o que resta.

 

Mas veio o degelo,

não como dilúvio,

mas como respiração,

e o calor, o toque

fez pulsar de novo o que era pó.

 

Moveu-se

devagar,

como quem acorda de um sonho de Deus

e procura nos próprios contornos

a razão de ainda estar aqui.

 

Diz-se que é minhoca,

mas é mais do que isso:

é uma pergunta,

um eco reanimado,

a prova de que há coisas

que nem o tempo consegue matar.

 

Talvez os glaciares tenham boca,

e esta seja uma das vozes

a dizer-nos:

“nem tudo está morto, apenas à espera”.

 

E se há vida que hiberna milénios,

então há dor, há luz, há sabedoria

à espera também,

 

e espera o humano em ti

pelo degelo certo.

 

O Útero do Vazio / J.M.J.

No centro do espiralado ventre da galáxia

existe um não-lugar,

uma ausência que pesa mais do que quatro milhões de sóis,

um monstro calado

que nunca chegou a nascer.

 

Não é olho,

nem boca,

mas tudo converge para si,

como se o cosmos soubesse

que ali vive o seu segredo mais antigo.

 

As estrelas dançam à sua volta

numa obediência sem nome,

como monges girando em torno

de um deus sem face.

 

Diz-se que é buraco negro,

mas talvez seja apenas o nome humano

para o lugar onde termina o tempo

e começa a consciência.

 

Não tem luz,

mas tem sombra,

e essa sombra é a prova

de que o invisível existe.

 

É o útero do vazio

onde o espaço se curva sobre si mesmo

e os átomos se rendem

à gravidade do mistério.

 

No íntimo, talvez todos tenhamos um Sagittarius A*

a pulsar-nos no peito,

a chamar-nos para dentro,

quando tudo à volta se desfaz.

 

Porque é ali,

no núcleo silencioso do que não compreendemos,

que repousa a verdade

antes de ter nome.

A Salvação Debaixo dos Pés (Poema inspirado na descoberta da saponita) / J.M.J.

Não serão os céus a salvar-nos,

nem máquinas douradas

que devoram o tempo e vendem futuro.

 

A resposta

estava no chão.

 

Na terra pisada,

no pó que se cola aos dedos,

no barro dos pobres,

na argila sem nome

que o mercado ignorou.

 

É ali,

na câmara secreta dos minerais,

que a memória da terra

aprendeu a respirar por nós.

 

Uma colher

carrega um campo de futebol,

não em peso,

mas em poros,

em silêncio,

em espera.

 

A saponita não grita,

não exige,

não consome,

apenas acolhe

o que o homem exalou sem pensar.

 

CO,

fantasma do progresso,

é sugado sem violência,

sem máquina,

sem altar.

 

A argila é templo da simplicidade,

diz-nos:

“Vocês olham para cima,

mas é cá em baixo que se perdoa.”

 

E talvez um dia,

quando os satélites se cansarem

de vigiar o colapso,

alguém olhe para o chão,

e veja ali,

num punhado de pó,

a redenção.

 

 

(Este poema nasce do assombro provocado por uma descoberta científica recente: a saponita, uma argila comum e abundante, revelou-se capaz de capturar dióxido de carbono de forma simples, barata e natural.

Enquanto o mundo procura soluções tecnológicas cada vez mais complexas e dispendiosas para travar o colapso climático, a resposta, como tantas vezes, repousava no chão, esquecida.

Há nesta argila silenciosa um símbolo: o retorno ao essencial, à terra, à escuta.

“A Salvação Debaixo dos Pés” é, pois, mais do que um comentário a uma inovação; é uma ode ao invisível que sustenta, à humildade da matéria, e à possibilidade de redenção através do que o mercado não vê: o simples, o pobre, o barro.)

 

Manual do Silêncio / J.M.J.

A liberdade não cai de repente.

Desce,

em degraus suaves,

por escadas de boas intenções.

 

Não é tomada com espadas,

mas com decretos,

normas

e o aplauso dos distraídos.

 

Vem disfarçada de ordem,

de moral,

de protecção,

e ergue muros enquanto sussurra:

“É para o teu bem.”

 

E os que ainda falam, falam,

mas já não dizem,

há palavras que se tornam suspeitas,

ideias que deixam de caber nos ouvidos públicos,

sentenças que se calam antes de nascer.

 

Não há prisão visível,

mas um conforto vigilante,

um contrato de silêncio assinado a prestações,

enquanto os que protestam

são chamados de extremos,

e os que desconfiam,

acusados de ingratidão.

 

As grades são polidas,

transparentes,

quase belas,

e por isso, aceites.

 

A liberdade morre assim:

não com um grito,

mas com um encolher de ombros.

 

E cada vez que calas uma dúvida,

rejeitas uma pergunta,

aceitas sem saber porquê,

cortas uma fatia de ti

e dás ao carrasco que veste fato.

 

Até que um dia

já não sabes o que foste,

nem o que poderias ter dito.

  

(Este poema nasce da inquietação perante um fenómeno antigo, mas cada vez mais sofisticado: o desmantelamento progressivo da liberdade em nome da ordem, da segurança ou da moral. Inspirado numa ideia frequentemente atribuída a Friedrich Hayek,  a de que a liberdade raramente se perde de uma só vez, mas sim aos poucos, como se corta salame, “Manual do Silêncio” procura alertar para o modo como, muitas vezes com o nosso consentimento tácito, se vão apagando espaços de expressão, pensamento e dissidência.

Não vivemos tempos de grilhões visíveis, mas de consensos vigiados e de ruídos abafados com aplausos. O perigo, hoje, é o silêncio que parece normal.)


O Ouro e o Sangue / J.M.J.

Dizem:

foram os portugueses que inventaram o tráfico,

como se a História nascesse no Tejo

e não sangrasse já nas margens do Nilo,

nas fornalhas da Mesopotâmia,

nos impérios que ergueram pirâmides com costas alheias.

 

Antes de nós,

reis divinos arrastavam vencidos como oferenda,

e, nas selvas das Américas,

corpos serviam de tributo aos deuses sedentos.

 

Sim, os navios partiram de Lisboa,

mas carregavam pactos com reinos africanos

que vendiam os seus próprios irmãos

por espingardas e espelhos.

 

E sim, foi negócio,

como tudo o que o ouro toca.

 

Hoje,

enquanto a indignação dança em reels e hashtags,

quem chora pelos 40 milhões ainda presos?

 

Quarenta milhões:

almas cativas por dívidas que não contraíram,

por contratos que nunca assinaram,

por nascimentos que as condenaram a servir.

 

Não nas carrancas dos navios,

mas nas sombras do presente,

onde a escravatura vive:

discreta, eficiente, lucrativa.

 

Enquanto a memória é julgada com dedos indignados,

o agora continua a vender carne humana

em nome do conforto, da fé, do costume, da economia.

 

Há quem prefira chorar o passado

a enfrentar a vergonha de o repetir.

 

Pelo menino que cose o teu sapato

numa cave sem nome na Ásia?

 

Pelo agricultor que colhe os teus morangos,

com papéis falsos e pulmões a arder?

 

Pela mulher filipina,

trancada num apartamento do Golfo,

presa a um contrato que nunca leu?

 

Pelas meninas vendidas a um velho no Afeganistão?

 

Pelos que escavam cobalto no Congo,

para que o teu telefone brilhe mais depressa?

 

Pela rapariga moldava,

que sorri nas montras de Berlim,

com os joelhos gastos de fingir prazer?

 

A escravatura não acabou,

apenas aprendeu a disfarçar-se.

 

Hoje, veste farda de multinacional,

fala em contratos e eficiência,

e sorri nos anúncios de Natal.

 

Continuamos a comprar o barato

com o sangue do invisível.

 

E a História

serve de arma quando convém,

mas raramente de espelho.

 

Ninguém inventou a escravatura.

Todos a carregámos.

E muitos ainda a alimentam,

de olhos abertos,

com o coração desligado.