Dizem que o gesto começa
antes do gesto,
que a mão já partiu
quando o “eu” ainda procura a maçaneta da decisão.
No subsolo do crânio
um rio move pedras invisíveis;
o filme avança,
e só depois a consciência cola a legenda ao ecrã.
Chamam-lhe prontidão,
uma maré elétrica que sobe sem pedir licença,
um sílex a riscar faísca nas cavernas do hábito,
enquanto o palco da vontade ainda espera luz.
Se é assim, quem escolhe?
O trilho de ferro que não sabe para onde vai
ou o maquinista que acorda a meio da viagem
e muda uma agulha tardia?
Talvez a liberdade não seja tirana do início,
mas guardiã do desvio.
Um veto miúdo,
uma mão que apaga o fósforo já aceso
antes que a casa inteira arda.
Há quem diga: somos máquina.
Ligação de cabos, química com sotaque,
um programa antigo a repetir padrões,
um metrónomo a impor batidas ao sangue.
E no entanto, há noites
em que a máquina pára para ouvir o próprio ruído,
e desse ruído nasce um compasso novo,
como quem encontra espaço entre dentes de engrenagem.
Talvez a consciência seja isto:
um atraso fértil,
uma varanda aberta na parede do inevitável,
o direito de reescrever a legenda
ainda com a cena em andamento.
Não é soberana,
não decreta mundos do nada,
mas aprende, desaprende,
edita o texto com o lápis gasto do arrependimento.
O corpo decide ir,
a história pergunta porquê.
Entre o primeiro impulso e a narrativa
ergue-se um intervalo habitável,
tão breve quanto um piscar de luz,
tão vasto quanto uma infância.
A biologia empurra;
o tempo, a fome, a memória, o medo
sentam-se à mesa como velhos generais.
A vontade não os expulsa,
negoceia território,
traça um corredor humanamente livre
por entre mapas que já vinham riscados.
E há mais:
aprendemos a treinar abismos.
O hábito pode ser jaula,
mas também corda esticada entre prédios,
disciplina a ensinar o músculo
a preferir pontes a paredes.
Se tudo é química,
então a compaixão também é molar,
a coragem tem sinapses de inverno,
e o perdão é uma proteína que se dobra
para caber no peito.
Não somos deuses,
mas não somos relógios.
Somos o atraso que pensa,
a margem que cresce para caber o outro,
o risco de dizer “não”
ao velho reflexo que jurava salvar-nos.
Talvez o livre-arbítrio não seja um trono,
mas um lugar vazio à cabeceira
que reservamos à presença.
Quando ela chega,
as mesmas causas de sempre
já não produzem o mesmo efeito.
E assim vivemos:
meio roteiro, meio improviso,
o cérebro a lançar setas no escuro,
a consciência a acender uma vela sobre o alvo,
e às vezes a mudar a própria parede.
No fim do dia, escolhemos
como contamos a nós mesmos o que fizemos,
e o conto, contado muitas vezes,
começa a ensinar o gesto a nascer diferente.
A legenda chega atrasada, sim,
mas chega com o poder humilde
de corrigir o futuro.
Nesse segundo aberto
entre impulso e palavra
respira a nossa parte de infinito.
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