Seguidores

domingo, 17 de agosto de 2025

Quando Ela Chega: Mistério

Dizem que o gesto começa

antes do gesto,

que a mão já partiu

quando o “eu” ainda procura a maçaneta da decisão.

 

No subsolo do crânio

um rio move pedras invisíveis;

o filme avança,

e só depois a consciência cola a legenda ao ecrã.

 

Chamam-lhe prontidão,

uma maré elétrica que sobe sem pedir licença,

um sílex a riscar faísca nas cavernas do hábito,

enquanto o palco da vontade ainda espera luz.

 

Se é assim, quem escolhe?

O trilho de ferro que não sabe para onde vai

ou o maquinista que acorda a meio da viagem

e muda uma agulha tardia?

 

Talvez a liberdade não seja tirana do início,

mas guardiã do desvio.

Um veto miúdo,

uma mão que apaga o fósforo já aceso

antes que a casa inteira arda.

 

Há quem diga: somos máquina.

Ligação de cabos, química com sotaque,

um programa antigo a repetir padrões,

um metrónomo a impor batidas ao sangue.

 

E no entanto, há noites

em que a máquina pára para ouvir o próprio ruído,

e desse ruído nasce um compasso novo,

como quem encontra espaço entre dentes de engrenagem.

 

Talvez a consciência seja isto:

um atraso fértil,

uma varanda aberta na parede do inevitável,

o direito de reescrever a legenda

ainda com a cena em andamento.

 

Não é soberana,

não decreta mundos do nada,

mas aprende, desaprende,

edita o texto com o lápis gasto do arrependimento.

 

O corpo decide ir,

a história pergunta porquê.

Entre o primeiro impulso e a narrativa

ergue-se um intervalo habitável,

tão breve quanto um piscar de luz,

tão vasto quanto uma infância.

 

A biologia empurra;

o tempo, a fome, a memória, o medo

sentam-se à mesa como velhos generais.

A vontade não os expulsa,

negoceia território,

traça um corredor humanamente livre

por entre mapas que já vinham riscados.

 

E há mais:

aprendemos a treinar abismos.

O hábito pode ser jaula,

mas também corda esticada entre prédios,

disciplina a ensinar o músculo

a preferir pontes a paredes.

 

Se tudo é química,

então a compaixão também é molar,

a coragem tem sinapses de inverno,

e o perdão é uma proteína que se dobra

para caber no peito.

 

Não somos deuses,

mas não somos relógios.

Somos o atraso que pensa,

a margem que cresce para caber o outro,

o risco de dizer “não”

ao velho reflexo que jurava salvar-nos.

 

Talvez o livre-arbítrio não seja um trono,

mas um lugar vazio à cabeceira

que reservamos à presença.

Quando ela chega,

as mesmas causas de sempre

já não produzem o mesmo efeito.

 

E assim vivemos:

meio roteiro, meio improviso,

o cérebro a lançar setas no escuro,

a consciência a acender uma vela sobre o alvo,

e às vezes a mudar a própria parede.

 

No fim do dia, escolhemos

como contamos a nós mesmos o que fizemos,

e o conto, contado muitas vezes,

começa a ensinar o gesto a nascer diferente.

 

A legenda chega atrasada, sim,

mas chega com o poder humilde

de corrigir o futuro.

Nesse segundo aberto

entre impulso e palavra

respira a nossa parte de infinito.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.