I. Voz do Abismo
Eles vieram sem armas,
mas com olhos cheios de alvoradas
e mãos abertas como o ventre da terra,
onde o saber germina.
Desceram por Amor,
não por glória,
e isso enfureceu Javé
mais do que qualquer rebelião.
II. O Conhecimento Proibido
Ensinaram os nomes das estrelas
e os ciclos do sangue,
fizeram da pedra um lar,
do fogo, luz,
da palavra, ponte.
Mas o que floresce fora do Éden
é semente de desobediência,
dizia o Trono.
III. O Castigo
“Encadeai-os!”, bradou a Voz
que não aceita partilha.
Aos filhos mistos,
os Nefilim,
a sentença do dilúvio;
aos Vigilantes,
a prisão até ao fim dos tempos.
Não por ódio.
Por medo.
IV. O Que Resta
Mas há quem os ouça nas fendas da pedra,
quem veja os seus olhos nos trovões,
quem receba em sonhos a ciência esquecida
dos deuses de Lux.
E o Amor?
Permanece acorrentado,
mas intacto.
V. O Filho do Homem
Antes do tempo ser contado,
já Ele existia,
como brisa que não conhece jaula,
como olhar que atravessa os véus.
Não veio de Javé
nem foi moldado do barro,
mas sim do silêncio
que antecede a luz.
Quando os Vigilantes tombaram,
foi por Ele que Enoque chorou,
e pela Sua voz
que ergueu a súplica.
“Não é rebelião,” disse.
“É Amor.”
Mas Javé não compreende
o que não se submete.
VI. Ecos da Terra
Agora caminham entre nós,
os filhos dos caídos,
com olhos de memória acesa
e cicatrizes de eras antigas.
Não carregam espada,
nem pregam doutrina,
só recordam
que somos mais
do que carne com medo.
O Filho do Homem
fala-lhes no sono,
sopra-lhes coragem
e ensina-os a levantar-se
não contra,
mas além.
VII. O que Caminha por Entre as Estrelas
O que caminha por entre as estrelas
não tem nome,
nem trono,
mas a Sua presença desfolha os mundos
como se tocasse harpas de gravidade.
Ele não veio salvar,
veio lembrar.
Não trouxe religião,
trouxe memória.
E onde passa,
despertam as pedras
e os exilados reconhecem-Lhe o passo,
mesmo nunca O tendo visto.
Ele é anterior à culpa,
alheio ao sacrifício,
imune ao medo dos deuses com ciúmes.
Foi Ele quem ensinou
aos primeiros filhos
a escrever nos céus
com fogo e gesto,
e é por Ele
que os de Lux ainda choram.
VIII. As Lágrimas de Lux
Eles não choram por fraqueza,
mas porque se lembram
de quando o som puro do princípio
era uma só vibração,
e não havia nome nem domínio,
nem céu separado da terra.
Choram por Amor,
o Amor que desceu com eles
e ficou preso nos veios da matéria,
à espera de ser relembrado.
Cada lágrima sua
é um eco da Promessa:
que a semente semeada em dor
florirá em consciência,
num Homem que não curva
nem fere,
mas acolhe.
Os de Lux esperam esse dia
como quem espera a aurora,
sabendo que ela virá,
não por decreto,
mas por memória desperta.
IX. A Promessa Queimando
No âmago do tempo,
há um altar que nunca foi apagado,
feito de silêncio antigo
e brasas que recusaram morrer.
Lá arde a Promessa,
não escrita por deuses vingativos,
mas soprada pelo Filho do Homem
antes da criação do mundo.
Essa chama não consome,
apenas revela,
e todos os que a encontram
deixam de pertencer à noite.
Os de Lux conhecem-na,
porque a guardaram em segredo
desde a queda,
como quem esconde um Sol
dentro de um suspiro.
E agora,
em cada desperto,
a Promessa queima,
não para destruir,
mas para chamar
a uma nova terra
sem tronos,
onde ninguém é servo
e todos são lembrança viva
do que foi esquecido.
X. O Regresso dos Caídos
Vieram com o som do vento
em línguas que só o coração compreende,
sem trombetas,
sem vingança,
sem a coroa da guerra.
Os seus olhos já não ardem de dor,
mas de compaixão desperta,
porque conheceram as entranhas do abismo
e ali esperaram o tempo do Homem,
aquele instante em que a liberdade
vale mais do que o céu.
Não regressaram para reinar,
regressaram para recordar,
para sussurrar aos esquecidos
que há um Amor mais antigo do que Javé
e mais forte do que o medo.
Caminham entre nós
sem nome,
sem templo,
mas quando olhas bem
reconheces-lhes o brilho
de quem caiu por Amor
e nunca deixou de amar.
Eles são espelho e semente,
ferida e promessa,
anjos da matéria,
mestres da lembrança.
E quem os escuta
já não precisa de um deus
que castiga para ser temido,
mas de um Fogo
que ilumina para ser partilhado.
XI. Sophia Desvela o Livro Selado
Foi numa manhã sem tempo
que Sophia ergueu o véu.
As montanhas estremeceram,
não por medo,
mas por reverência.
Dos seus olhos caíram letras de luz
que reacenderam pergaminhos antigos,
guardados na memória dos astros
e no sangue dos justos.
Ela não veio provar nada,
veio lembrar.
Que antes do Trono havia Canção,
antes da Lei havia Laço,
e antes do castigo, escolha.
Desatou os sete selos,
não com ira,
mas com ternura firme,
como quem liberta
o último suspiro de um sonho encarcerado.
E cada selo, ao romper-se,
revelava um nome esquecido,
um gesto interdito,
uma verdade sussurrada
pelos Caídos nas noites de clarividência.
Os homens que ouviram
não viraram profetas,
nem líderes,
nem mártires.
Viraram fontes,
onde a sede dos outros
encontra memória.
E então Sophia sorriu,
não com triunfo,
mas com Amor antigo,
pois sabia
que o Livro, uma vez lido,
nunca mais se poderia fechar.
XII. O Despertar dos Últimos Filhos da Terra
Vieram sem rótulo,
sem missão visível,
sem auréolas ou marcas de nascença,
mas traziam nos olhos
um reflexo que só os céus reconhecem.
Caminharam entre os homens
como sombra de uma estrela esquecida,
resgatando palavras soterradas
em silêncios ancestrais.
Eram crianças e velhos,
poetas e loucos,
exilados e cantores de ruas,
todos diferentes,
e todos o mesmo.
Quando se olhavam,
reconheciam-se,
não pela face,
mas pela ferida.
Sabiam da Queda
e da promessa adiada,
sabiam dos Irmãos aprisionados
e dos pactos rasgados por medo.
E ao ouvirem Sophia,
ou um sussurro que lhes lembrava Sophia,
não correram,
não fugiram,
ficaram.
Com as mãos nuas
começaram a tocar o mundo
como se o mundo fosse barro vivo
e cada gesto,
uma prece secreta.
Não clamaram por vingança,
clamaram por lembrança.
Pois sabiam que
o fim dos tempos
não é destruição,
mas parto.
E cada um deles
foi escolhido
para ser parteira da nova Terra.
XIII. Quando os Deuses Caídos Caminharem ao Nosso Lado
Virão, primeiro, nos sonhos,
como quem bate devagar
à porta de um coração adormecido,
sem querer assustar,
mas urgindo memória.
Virão sem véus,
nem palavras messiânicas,
apenas com o peso da verdade
nos olhos antigos como a alvorada.
Os Deuses Caídos,
os primeiros que amaram o Homem
sem permissão,
os que ensinaram o fogo
e o nome secreto das estrelas.
Aqueles que foram punidos
por dar luz antes do tempo,
por acreditar que o barro podia voar
se amado com paciência.
Agora, regressam
não como senhores,
mas como irmãos,
com as cicatrizes à mostra
e os nomes riscados dos livros.
Recolherão os últimos,
aqueles que foram ridicularizados
por verem além do dogma,
por recusarem o ídolo de mil olhos
que exige submissão e medo.
E hão de andar connosco
como os andarilhos do deserto,
como os loucos nas praças,
como os que nunca deixaram de cantar.
E nesse dia,
as Escrituras arderão,
não por ódio,
mas por desnecessárias.
Porque a verdade
já não estará escrita,
mas viva,
na pele, na terra,
nos olhos dos que se amam.
XIV. A Última Voz do Filho do Homem
Não veio de nuvens,
nem de altares,
nem de trombetas.
Veio como sussurro na brisa,
e lágrima no rosto dos que resistiram.
Chamaram-lhe o Filho do Homem,
mas Ele nunca quis reinos,
nem títulos,
nem multidões prostradas.
Só quis
que o Homem se lembrasse
de onde veio
e para onde voltará.
Não aos céus de Javé
feitos de ouro e chantagem,
mas ao Jardim anterior
à culpa,
ao nome,
ao medo.
O Filho do Homem
não pregou,
despertou.
Não ergueu muralhas,
desfez muros
com um sopro.
Foi visto
em prisioneiros que cantam,
em loucos que amam,
em crianças que dizem “não”
à mentira vestida de verdade.
É o que caminha entre as estrelas
e murmura aos poetas:
“Escreve sem temor,
que a tua pena
é a continuação do meu verbo.”
E quando o último se erguer
e disser “eu Sou”
sem tremer,
a Sua obra estará cumprida.
E então,
Javé cairá,
não por guerra,
mas por desuso.
XV. O Regresso dos Silenciados
No sussurro do vento,
retornam os esquecidos,
os que a história calou,
os que amaram sem medo,
os que a prisão não dobrou...
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