Capítulo I — O Envio dos Vigilantes
No silêncio antes das eras,
quando o Homem ainda não conhecia
o peso do seu próprio nome,
o Céu observava a Terra
como um pai que vigia
uma criança adormecida.
Mas nem todos no alto tinham
a mesma natureza.
O Altíssimo, que respira eternidade,
contemplava o mundo com paciência.
O Filho do Homem, silencioso,
guardava em si a promessa de reconciliação.
E havia também Javé, senhor de comando e de provas,
cujo trono era sustentado por temor e reverência,
e que não suportava o som
de uma adoração imperfeita.
Foi dele a ordem:
“Enviarei vigilantes.
Que os seus olhos alcancem o mais fundo dos corações,
e que a sua presença pese como sombra
sobre quem ousar desviar-se.”
E assim desceram eles, os Vigilantes,
portadores de luz antiga,
olhos que viam além da carne
e mãos capazes de moldar mundos.
Vieram não por vontade própria,
mas pelo decreto de Javé,
cujo olhar já conhecia o fim antes do princípio.
Ele sabia, e talvez desejasse,
que a proximidade da Terra
despertaria neles algo mais forte do que a obediência.
As estrelas testemunharam a sua chegada.
Os rios, ao vê-los, correram mais suaves.
E os homens e mulheres, ao sentir a sua presença,
não sabiam se temiam ou ansiavam.
E foi aí, no encontro de mundos,
que o teste começou,
não um teste para a humanidade,
mas para os próprios mensageiros.
Capítulo II — O Primeiro Olhar sobre a Humanidade
Desceram entre montes e vales,
onde o vento trazia o perfume
das primeiras colheitas.
Os Vigilantes, moldados pela luz,
viram pela primeira vez o olhar humano de perto,
e algo, dentro deles, rompeu o véu do dever.
As mulheres caminhavam
com a graça da terra que lhes deu forma,
e os homens, ainda inocentes,
guardavam nos olhos a curiosidade dos que não conhecem
limites.
E os Vigilantes sentiram algo
que no Céu nunca fora nomeado:
um compasso novo no peito,
como se cada batida fosse
uma semente prestes a florescer.
Foi então que o silêncio se transformou em palavras,
e as palavras em gestos,
e os gestos em partilha.
Ensinavam-lhes a ler o curso das estrelas,
a forjar metais da rocha,
a misturar ervas que curam
e a entalhar símbolos que guardam segredos antigos.
Os homens aprendiam com avidez,
e as mulheres ofereciam, em troca,
o calor dos seus lares
e a luz do seu afeto.
O amor nasceu,
não como um relâmpago,
mas como fogo escondido sob as cinzas,
crescendo até iluminar tudo.
E nesse amor havia entrega e criação,
filhos que traziam no sangue
a força da terra e o sopro do céu.
Filhos que, ao crescer,
pareciam maiores do que a própria história.
Mas no alto, Javé via.
E o que para uns era beleza, para ele era afronta.
Pois cada nova palavra ensinada,
cada abraço dado,
arrancava um tijolo do muro
que mantinha a humanidade cativa.
E ele sabia:
conhecimento é poder,
e poder partilhado é poder perdido.
Capítulo III — A Ira e o Julgamento
O céu fechou-se como uma porta
batida com violência.
Os ventos mudaram,
trazendo o peso da fúria
que se acumulava desde o primeiro beijo,
desde a primeira lição proibida.
Javé chamou os exércitos que nunca conhecem descanso.
Na sua voz havia mais gelo do que fogo,
e mais medo do que justiça.
— Eles romperam a ordem.
Misturaram o pó da terra com o hálito do céu.
Deram aos mortais o que pertence apenas a mim.
Mas o que chamava “ordem” era silêncio;
o que chamava “lei” era corrente.
A liberdade era para ele ameaça,
e o amor, rebelião.
Os Vigilantes foram caçados como presas.
Aqueles que moldavam ferramentas, que curavam feridas
e contavam os segredos das estrelas,
agora sentiam o peso das correntes nos pulsos.
Foram lançados em abismos
onde nem a luz ousa entrar,
selados por rochas que o tempo não consegue mover.
Os filhos que nasceram desse encontro,
altos, fortes, de olhos que pareciam lembrar-se do
céu,
foram perseguidos.
Chamaram-lhes monstros, maldição, erro.
Mas eram apenas a prova viva de que o amor pode unir
mundos.
Veio então a sentença final:
as águas começaram a subir, primeiro nos rios,
depois engolindo cidades e campos.
O dilúvio limpou tudo
o que Javé considerava mancha.
E na superfície calma que ficou,
não havia rasto de riso nem de canção,
apenas o eco mudo de um amor condenado.
Capítulo IV — A Promessa Silenciosa
Mesmo nas trevas onde a luz
parecia esquecida,
os aprisionados não deixaram o coração morrer.
As correntes que os seguravam
podiam prender o corpo,
mas jamais poderiam aprisionar
a lembrança do amor que tinham conhecido,
nem o sopro da sabedoria
que haviam semeado entre os humanos.
No silêncio dos abismos,
formaram cânticos mudos,
ecos de uma verdade que não podia ser apagada.
Cada batida de asa ausente,
cada gesto de compaixão,
era memória viva
de que a harmonia entre Céu e Terra é possível.
E ainda que o guardião do poder
os mantivesse afastados,
a esperança crescia em cada coração humano que ousava
aprender,
em cada olhar que procurava entender além do medo,
em cada ato de coragem que rejeitava a tirania da
ignorância.
O amor, proibido, continuava a pulsar nas sombras.
Capítulo V — A Lembrança dos Filhos
Mesmo perseguidos,
os filhos do encontro proibido
guardavam a centelha do céu dentro de si.
Nos seus olhos ardiam memórias
de pais que ousaram amar,
de mãos que ensinaram sem medo,
de sorrisos que desafiaram ordens.
E assim cresciam entre mundos
como ponte viva entre a Terra e o Céu.
Cada gesto de bondade,
cada ato de coragem,
era semente plantada na memória da humanidade,
lembrança de que a luz pode persistir
mesmo quando escondida pelas trevas.
Capítulo VI — A Reconciliação Prometida
Um dia, quando o tempo se curvar
à eternidade,
as correntes cairão.
Os aprisionados caminharão novamente sob a luz,
não como vítimas,
mas como heraldos da liberdade
que nunca pode ser negada
ao espírito que ousa conhecer e sentir.
O Céu e a Terra, enfim, serão um só,
onde o amor não é crime,
onde o conhecimento é dádiva,
e onde o espírito humano caminha
livre e pleno,
como sempre deveria ter sido.
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