Misturámo-nos no vento das cavernas,
quando ainda não sabíamos os nomes
das coisas nem dos deuses.
Tocámos peles, partilhámos fogo,
sem saber que o toque
ficaria gravado em cada célula.
Durante sete mil invernos,
humanos e neandertais
misturaram-se em silêncio,
não como invasores,
mas como ecos de um mesmo grito antigo.
E o sangue, esse escriba invisível,
guardou a história
que as pedras não souberam contar.
Hoje, no olhar de um asiático,
há mais sombra do fogo neandertal
do que no rosto de um europeu,
e isso não é acaso,
é memória que caminhou mais longe.
Não foi uma noite,
foi um tempo,
foi um entrelaçar de destinos
entre os que vinham de longe
e os que já habitavam o silêncio.
Agora sabemos:
não somos puros.
Nunca fomos
e ainda bem.
O que somos
é o resultado de mil encontros,
mil gestos partilhados,
mil despedidas de barro,
mil genes que se recusaram a morrer.
Não herdámos apenas a razão,
herdámos a convivência com a diferença.
Somos o passado em mutação.
Somos um poema
escrito a várias mãos,
no genoma da Terra.
(Este poema nasce da revelação científica de que o
contacto entre humanos modernos e neandertais foi longo, complexo e marcado por
um entrelaçar profundo de vidas, culturas e corpos, durante milhares de anos.
Mais do que um dado genético, essa miscigenação é um
testemunho antigo da nossa capacidade de convivência e adaptação, mesmo nos
primórdios da consciência. Contra a ideia de purezas identitárias ou
civilizacionais, este poema afirma a beleza da mistura, da imperfeição
criadora, da memória que não se apaga nem com o tempo nem com os muros
ideológicos.
"Nos Ossos do Tempo" é, assim, um gesto
poético que honra esse passado partilhado. Um lembrete de que somos, todos,
fruto de encontros, e que há dignidade na diversidade inscrita no próprio corpo
humano.)
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