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terça-feira, 22 de julho de 2025

Nos Ossos do Tempo

Misturámo-nos no vento das cavernas,

quando ainda não sabíamos os nomes

das coisas nem dos deuses.

 

Tocámos peles, partilhámos fogo,

sem saber que o toque

ficaria gravado em cada célula.

 

Durante sete mil invernos,

humanos e neandertais

misturaram-se em silêncio,

não como invasores,

mas como ecos de um mesmo grito antigo.

 

E o sangue, esse escriba invisível,

guardou a história

que as pedras não souberam contar.

 

Hoje, no olhar de um asiático,

há mais sombra do fogo neandertal

do que no rosto de um europeu,

e isso não é acaso,

é memória que caminhou mais longe.

 

Não foi uma noite,

foi um tempo,

foi um entrelaçar de destinos

entre os que vinham de longe

e os que já habitavam o silêncio.

 

Agora sabemos:

não somos puros.

Nunca fomos

e ainda bem.

 

O que somos

é o resultado de mil encontros,

mil gestos partilhados,

mil despedidas de barro,

mil genes que se recusaram a morrer.

 

Não herdámos apenas a razão,

herdámos a convivência com a diferença.

Somos o passado em mutação.

Somos um poema

escrito a várias mãos,

no genoma da Terra.

 

 

(Este poema nasce da revelação científica de que o contacto entre humanos modernos e neandertais foi longo, complexo e marcado por um entrelaçar profundo de vidas, culturas e corpos, durante milhares de anos.

Mais do que um dado genético, essa miscigenação é um testemunho antigo da nossa capacidade de convivência e adaptação, mesmo nos primórdios da consciência. Contra a ideia de purezas identitárias ou civilizacionais, este poema afirma a beleza da mistura, da imperfeição criadora, da memória que não se apaga nem com o tempo nem com os muros ideológicos.

"Nos Ossos do Tempo" é, assim, um gesto poético que honra esse passado partilhado. Um lembrete de que somos, todos, fruto de encontros, e que há dignidade na diversidade inscrita no próprio corpo humano.)

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