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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Poemas para Pensar o Escuro

1. O Nervo Oculto do Medo


Há sempre um ponto em que a alma treme:

um vazio súbito,

a sensação de que o mundo deixou de ter chão.

 

É aí que nasce o autoritarismo,

não como força,

mas como defesa.

 

Uma voz fora promete firmeza,

e o coração, cansado,

cede ao conforto de não ter de decidir.

 

O medo quer linhas direitas,

regras que nunca mudam,

um pai eterno que diga

o que é seguro

e o que deve ser temido.

 

E assim, na ânsia de evitar o abismo,

escolhe-se o cárcere

com as próprias mãos.



 

2. Rostos na Multidão


Quando olhamos um grupo ruidoso,

tendemos a vê-lo como massa,

um bloco de fúria

com um único rosto.

 

Mas basta aproximar o olhar

para perceber:

há ali histórias que nunca se cruzariam

fora daquele grito partilhado.

 

O magoado, o solitário,

o que perdeu o emprego,

o que nunca foi visto,

o que tem medo de ser visto,

o ingénuo,

o cansado,

o confuso.

 

Nenhum deles nasceu para o ódio,

nenhum trazia o punho fechado

no primeiro dia.

 

Foram sendo puxados

pela promessa de pertença,

como quem encontra calor

num incêndio.




3. A Máscara da Tribo


A coragem que explode na multidão

não pertence a ninguém.

 

É uma corrente elétrica,

um impulso partilhado

onde o “eu” se dissolve.

 

Sozinho, o homem hesita;

em grupo, avança sem consciência,

como se a responsabilidade

tivesse sido entregue ao vento.

 

A máscara da tribo

faz do tímido um guerreiro,

do frustrado um juiz,

do inseguro

um profeta do caos.

 

E quando a onda passa,

fica apenas o silêncio,

e a pergunta que ninguém quer fazer:

quem fui eu ali dentro?




4. A Ferida que Procura um Símbolo


Há um ponto frágil

no coração do homem

de que pouco se fala.

 

Medo de não ser suficiente,

de não ser desejado,

de não ser digno.

 

Esse medo, se não for acolhido,

transforma-se em aço:

gestos rígidos,

dogmas,

proclamações viris

que escondem a criança ferida

atrás do peito.

 

Alguns procuram ídolos fortes

para esquecer a própria tremura.

Outros procuram inimigos

que expliquem o desconforto invisível

que carregam há anos.

 

E assim, sem que percebam,

constroem templos

à volta da sua própria ferida.




5. O Que Devemos Combater


É fácil culpar o corpo:

a altura, o peso, o rosto,

a postura ou a ausência dela.

 

É fácil inventar padrões

para justificar o que é difícil de aceitar.

 

Mas os corpos são inocentes.

São cartas fechadas

que não dizem nada sobre o destinatário.

 

O que deve ser combatido

não é a forma da carne,

mas a forma da ideia.

 

É o pensamento que se torna muro,

a crença que se faz arma,

a narrativa que transforma o outro

em ameaça.

 

A luta é contra a escuridão que se move

de mente em mente,

não contra quem, perdido,

a carrega sem saber.

 

 

(Estes poemas nasceram de um exercício íntimo: olhar sem fugir.

Cada texto é uma tentativa de dar linguagem ao que nos acompanha nas zonas menos iluminadas da vida: os medos, os impulsos, os conflitos, as memórias que persistem para além do tempo.

Não escrevi estes poemas para oferecer soluções, mas para abrir espaço: para pensar, sentir, respirar.

O “escuro” aqui não é inimigo; é o terreno onde a verdade, quando chega, fala sem adornos, e onde, às vezes, começamos finalmente a escutar.)

 

 

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