1. O Nervo Oculto do Medo
Há sempre um ponto em que a alma treme:
um vazio súbito,
a sensação de que o mundo deixou de ter chão.
É aí que nasce o autoritarismo,
não como força,
mas como defesa.
Uma voz fora promete firmeza,
e o coração, cansado,
cede ao conforto de não ter de decidir.
O medo quer linhas direitas,
regras que nunca mudam,
um pai eterno que diga
o que é seguro
e o que deve ser temido.
E assim, na ânsia de evitar o abismo,
escolhe-se o cárcere
com as próprias mãos.
2. Rostos na Multidão
Quando olhamos um grupo ruidoso,
tendemos a vê-lo como massa,
um bloco de fúria
com um único rosto.
Mas basta aproximar o olhar
para perceber:
há ali histórias que nunca se cruzariam
fora daquele grito partilhado.
O magoado, o solitário,
o que perdeu o emprego,
o que nunca foi visto,
o que tem medo de ser visto,
o ingénuo,
o cansado,
o confuso.
Nenhum deles nasceu para o ódio,
nenhum trazia o punho fechado
no primeiro dia.
Foram sendo puxados
pela promessa de pertença,
como quem encontra calor
num incêndio.
3. A Máscara da Tribo
A coragem que explode na multidão
não pertence a ninguém.
É uma corrente elétrica,
um impulso partilhado
onde o “eu” se dissolve.
Sozinho, o homem hesita;
em grupo, avança sem consciência,
como se a responsabilidade
tivesse sido entregue ao vento.
A máscara da tribo
faz do tímido um guerreiro,
do frustrado um juiz,
do inseguro
um profeta do caos.
E quando a onda passa,
fica apenas o silêncio,
e a pergunta que ninguém quer fazer:
quem fui eu ali dentro?
4. A Ferida que Procura um Símbolo
Há um ponto frágil
no coração do homem
de que pouco se fala.
Medo de não ser suficiente,
de não ser desejado,
de não ser digno.
Esse medo, se não for acolhido,
transforma-se em aço:
gestos rígidos,
dogmas,
proclamações viris
que escondem a criança ferida
atrás do peito.
Alguns procuram ídolos fortes
para esquecer a própria tremura.
Outros procuram inimigos
que expliquem o desconforto invisível
que carregam há anos.
E assim, sem que percebam,
constroem templos
à volta da sua própria ferida.
5. O Que Devemos Combater
É fácil culpar o corpo:
a altura, o peso, o rosto,
a postura ou a ausência dela.
É fácil inventar padrões
para justificar o que é difícil de aceitar.
Mas os corpos são inocentes.
São cartas fechadas
que não dizem nada sobre o destinatário.
O que deve ser combatido
não é a forma da carne,
mas a forma da ideia.
É o pensamento que se torna muro,
a crença que se faz arma,
a narrativa que transforma o outro
em ameaça.
A luta é contra a escuridão que se move
de mente em mente,
não contra quem, perdido,
a carrega sem saber.
(Estes poemas nasceram de um exercício íntimo: olhar sem fugir.
Cada texto é uma tentativa de dar linguagem ao que nos
acompanha nas zonas menos iluminadas da vida: os medos, os impulsos, os
conflitos, as memórias que persistem para além do tempo.
Não escrevi estes poemas para oferecer soluções, mas
para abrir espaço: para pensar, sentir, respirar.
O “escuro” aqui não é inimigo; é o terreno onde a
verdade, quando chega, fala sem adornos, e onde, às vezes, começamos finalmente
a escutar.)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.