Seguidores

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Mortais Pecados

Olho-me ao espelho, debruado a talha

luminosamente esculpida, dourada,

e pergunto-me pelo espanto das respostas,

na assumida personagem de rainha má:


quem sou, para o que dou, quem me dá?

 

Miro-me na volumetria das imagens,

cobertas por peles enrugadas,

vincadamente marcadas por exageros expressivos:

choros entre risos,

plantados nos ansiosos ritmos do tempo.

 

Profundos e negros pontos,

poros de milimétricos diâmetros,

sombras cinzentas,

castanhos pêlos,

brancas perdidas entre cabelos.

Perfil de raiz de grega,

boca carnuda, gretada de secura,

sedenta de saudosos e sugados beijos,

de línguas entrelaçadas,

lambidelas bem salivadas.

 

Contemplo-me, fixado no meu próprio olhar,

de cor baça-tristeza.

Desfoco a máscara de pálido cansaço,

e não resisto ao embaraço de Narciso:


sou o deus que procurei

e amei em nome do milagre,

ou o mal que, de tanto me obrigar,

nunca reneguei.


Sou o miraculoso encantador a quem me dei,

ou a raposa velha, vaidosa, vestida de egoísta,

com estola de ovelha falsa, branca de altruísmo?


No meu lamento, a amargura por que matei:

sangrando, a vítima trucidei-a

no ranger dos molares,

saboreei com as gustativas variados paladares,

viciado no prazer da gula,

como instintivo porco;

omnívoro.

 

Rezo baixinho, cantarolando

beatas ladainhas de pecador,

que rouba e se perdoa

a cem anos de encarceramento.

 

No aliciamento cobiçante por belas coxas,

pertença de quem constantemente me enfrenta,

competindo com as mesmas forças,

traio-me na ilusão do possuir.

Viradas as costas,

acabamos sempre por fingir.

 

Entendo velhos e sábios ditados,

não os querendo surdinar em consciência.

Penso-me grande demais,

para que outros me entendam

como simples mortal.

 

Minha é a lúcida certeza

de querer enganar

e vencer.

 

Sadicamente esbofeteio rechonchuda face

do idealista tímido,

que acredita e se deixa humilhar;

oferece a outra

para também a avermelhar.

 

Vendo-me a infinitas riquezas, elegantes:

luxúrias terrenas, orgias, bacantes incestuosas,

sedas, glamour, jóias preciosas,

tudo o que ostente marca,

que pavoneie 

a suposta profundidade de minha alma.

Ah, Ah, Ah!

 

Salvas rebuscadas, brilhantes, de prata, pesadas,

riscadas de branco e fino pó.

Prostituo-me ao preço da mais-valia.

Excita-me de travesti Madalena,

e ter um guru que me defume, benza e perdoe,

sem que me caia

uma pedra na cauda.

 

Adoro o teatro espectacular,

ensaiado e encenado na vida,

mas faço sempre de pobre amador,

sendo um resistente actor.


Escancaro a garganta para trautear,

sem saber, nem sequer, solfejar,

gargarejo a seiva da videira,

que me escorre pelo escapismo do engano.

Quero audaciosamente brilhar,

descontrolando o encarrilhar do instrumento das cordas da glote,

com o do fole pulmonar,

e desafino o doce e melódico hino.

 

Sou, no vedetismo, a mediocridade

que se desfaz com o tempo,

até ser capaz de timbrar

sem ser pateado.

 

Acelero nas viagens que vêm até mim,

fujo do lento, travo demais.

Curvas perigosas, apertadas;

adrenalina na fronteira do abismo.


Fumo, bebo em excesso,

e converso banalidades entre ondas móveis

que me encurtam a pomposa solidão,

mas nada é em vão.

 

Tenho, na dicção, um tom vibrado e estudado,

e digo bem as palavras que sinto,

mas premeditadamente minto,

e digo de propósito sempre o errado.


Sou mal-educado, demasiado carente, enfadonho,

ressono e grunho durante o sono.

Tenho sempre o apressado intuito do saber,

de querer arrogantemente chamar a atenção,

por me achar condignamente o melhor, um senhor,

sem noção do ridículo,

nem da razão.

 

Digo não, quando deveria pronunciar sim;

teimosamente rancoroso, tolo, alucinado, perverso, mal-humorado.

Vejo em tudo a maldade do pecado.

Digo não, quando deveria embelezar a afirmação,

minto, digo, desdigo-me.


Mas fiz a gloriosa descoberta do meu crescer:

 

tenho uma única virtude verdadeira:

alguém paciente

gosta muito de mim.

 

Obrigado.

 

Tenho de descansar.



(Poema in (Re)cantos da Lua, publicado em Dezembro de 2006, pela Magda Editora)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.