Olho-me ao espelho, debruado a talha
luminosamente esculpida, dourada,
e pergunto-me pelo espanto das respostas,
na assumida personagem de rainha má:
quem sou, para o que dou, quem me dá?
Miro-me na volumetria das imagens,
cobertas por peles enrugadas,
vincadamente marcadas por exageros expressivos:
choros entre risos,
plantados nos ansiosos ritmos do tempo.
Profundos e negros pontos,
poros de milimétricos diâmetros,
sombras cinzentas,
castanhos pêlos,
brancas perdidas entre cabelos.
Perfil de raiz de grega,
boca carnuda, gretada de secura,
sedenta de saudosos e sugados beijos,
de línguas entrelaçadas,
lambidelas bem salivadas.
Contemplo-me, fixado no meu próprio olhar,
de cor baça-tristeza.
Desfoco a máscara de pálido cansaço,
e não resisto ao embaraço de Narciso:
sou o deus que procurei
e amei em nome do
milagre,
ou o mal que, de tanto me obrigar,
nunca reneguei.
Sou o miraculoso encantador a quem me dei,
ou a raposa velha, vaidosa, vestida de egoísta,
com estola de ovelha falsa, branca de altruísmo?
No meu lamento, a amargura por que matei:
sangrando, a vítima trucidei-a
no ranger dos molares,
saboreei com as gustativas variados paladares,
viciado no prazer da gula,
como instintivo porco;
omnívoro.
Rezo baixinho, cantarolando
beatas ladainhas de pecador,
que rouba e se perdoa
a cem anos de encarceramento.
No aliciamento cobiçante por belas coxas,
pertença de quem constantemente me enfrenta,
competindo com as mesmas forças,
traio-me na ilusão do possuir.
Viradas as costas,
acabamos sempre por fingir.
Entendo velhos e sábios ditados,
não os querendo surdinar em consciência.
Penso-me grande demais,
para que outros me entendam
como simples mortal.
Minha é a lúcida certeza
de querer enganar
e vencer.
Sadicamente esbofeteio rechonchuda face
do idealista tímido,
que acredita e se deixa humilhar;
oferece a outra
para também a avermelhar.
Vendo-me a infinitas riquezas, elegantes:
luxúrias terrenas, orgias, bacantes incestuosas,
sedas, glamour, jóias preciosas,
tudo o que ostente marca,
que pavoneie
a suposta profundidade de minha alma.
Ah, Ah, Ah!
Salvas rebuscadas, brilhantes, de prata, pesadas,
riscadas de branco e fino pó.
Prostituo-me ao preço da mais-valia.
Excita-me de travesti Madalena,
e ter um guru que me defume, benza e perdoe,
sem que me caia
uma pedra na cauda.
Adoro o teatro espectacular,
ensaiado e encenado na vida,
mas faço sempre de pobre amador,
sendo um resistente actor.
Escancaro a garganta para trautear,
sem saber, nem sequer, solfejar,
gargarejo a seiva da videira,
que me escorre pelo escapismo do engano.
Quero audaciosamente brilhar,
descontrolando o encarrilhar do instrumento das cordas
da glote,
com o do fole pulmonar,
e desafino o doce e melódico hino.
Sou, no vedetismo, a mediocridade
que se desfaz com o tempo,
até ser capaz de timbrar
sem ser pateado.
Acelero nas viagens que vêm até mim,
fujo do lento, travo demais.
Curvas perigosas, apertadas;
adrenalina na fronteira do abismo.
Fumo, bebo em excesso,
e converso banalidades entre ondas móveis
que me encurtam a pomposa solidão,
mas nada é em vão.
Tenho, na dicção, um tom vibrado e estudado,
e digo bem as palavras que sinto,
mas premeditadamente minto,
e digo de propósito sempre o errado.
Sou mal-educado, demasiado carente, enfadonho,
ressono e grunho durante o sono.
Tenho sempre o apressado intuito do saber,
de querer arrogantemente chamar a atenção,
por me achar condignamente o melhor, um senhor,
sem noção do ridículo,
nem da razão.
Digo não, quando deveria pronunciar sim;
teimosamente rancoroso, tolo, alucinado, perverso,
mal-humorado.
Vejo em tudo a maldade do pecado.
Digo não, quando deveria embelezar a afirmação,
minto, digo, desdigo-me.
Mas fiz a gloriosa descoberta do meu crescer:
tenho uma única virtude verdadeira:
alguém paciente
gosta muito de mim.
Obrigado.
Tenho de descansar.
(Poema in (Re)cantos da Lua, publicado em Dezembro de 2006, pela Magda Editora)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.