Algo começa
quando já não há como fingir.
As promessas tornam-se ocas,
as palavras repetem-se
como moedas gastas,
e a fé, usada em excesso,
racha nas mãos.
Há um cansaço coletivo,
não do sofrimento,
mas da mentira que o envolve.
O mundo já não acredita
no discurso que consola
sem tocar a ferida.
O que foi chamado sagrado
deixa de proteger,
o que governava pelo medo
treme,
o que confundia esperança
com submissão
já não sustém o peso do real.
Não é o fim do caos,
é o fim da desculpa.
Muitos procurarão culpados,
outros chamarão castigo
ao que é consequência,
mas não haverá deuses a gritar,
nem sinais no céu,
apenas a matéria a exigir verdade.
Relações serão revistas,
alianças desfeitas,
acordos rasgados
não por ódio,
mas por exaustão moral.
O invisível cairá sobre o concreto:
dívidas,
segredos,
abusos antigos,
tudo o que foi empurrado
para baixo do tapete do tempo.
E haverá raiva,
clara, crua,
sem retórica,
não como revolução,
mas como recusa:
não mais assim.
Alguns tentarão reacender mitos,
outros vender salvação,
outros pedir obediência
em nome da ordem,
mas a linguagem antiga
já não convence.
O que começa
não pede crença,
mas responsabilidade,
não promete redenção,
apenas trabalho,
não oferece conforto,
apenas limite,
não ergue heróis,
exige maturidade.
E talvez seja isso
o mais difícil de aceitar:
que o mundo não está a morrer,
está a perder as ilusões
que o impediam de crescer.
Depois,
só depois,
poderá haver fogo criador,
mas antes,
terá de arder
o que nunca foi verdadeiro.
(Este poema nasce da observação crítica do funcionamento das instituições
políticas, económicas e simbólicas que moldam a vida coletiva. Refere-se ao ano
de 2026 como um tempo de transição e confronto, marcado pelo esgotamento de
modelos de poder sustentados na manipulação do medo, na simplificação do
discurso público e na delegação sistemática da responsabilidade. Não antecipa
acontecimentos concretos, mas expõe dinâmicas já em curso: a crise de
legitimidade das lideranças, a fragilidade das narrativas de autoridade e a
urgência de uma ética política adulta, capaz de responder à realidade sem
recorrer a mitos, salvadores ou ilusões de controlo.)
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