As Palavras e o Poder
Escreveram em tábuas,
em papiros gastos,
com mãos trémulas de fé e medo.
Cada linha não era céu,
era tempo:
reis e sacerdotes,
exílios e esperanças,
paixões de um povo
que apenas queria sobreviver.
Chamaram sagrado ao humano,
vestiram de eternidade o efêmero,
ergueram muralhas de letras em chamas
para guardar segredos
e domesticar consciências.
Mas o livro não é pedra,
é voz de homens,
carne de memória
e se nele há luz,
é porque a chama da justiça
resiste entre as cinzas.
O Homem e o Mito
No início, era apenas um homem:
caminhava entre os humildes,
falava em parábolas simples,
tocava feridas com mãos nuas.
Não erigiu templos,
não exigiu coroas de ouro,
pediu apenas que amassem
uns aos outros
como se respirassem.
Mas os séculos chegaram
com penas afiadas,
e escreveram dele um deus,
um trono, uma espada,
um juiz distante,
um salvador longínquo.
O homem perdeu-se no mito.
O gesto puro dissolveu-se
em dogmas intransponíveis
e a voz que clamava liberdade
foi usada para erguer grilhões.
Ainda assim,
se escutarmos no silêncio,
há uma palavra que persiste:
não pertence a igrejas
nem a impérios,
mas à vida que se dá
sem exigir nada em troca.
Correntes Invisíveis
Dizem falar em nome de Deus,
mas a voz soa como decreto.
Erguem escrituras como armas,
selam consciências com medo,
confundem fé com submissão.
No púlpito e no trono
a mesma máscara:
poder disfarçado de verdade,
ordem que se alimenta
da obediência alheia.
Mas nenhum édito cala
o coração que pensa,
nenhuma excomunhão apaga
a centelha da razão.
Liberdade não é blasfêmia,
é respiração.
É ousadia de ser humano
sem pedir licença.
Mesmo que cerquem palavras
com muros de censura,
o pensamento, invisível,
desliza por frestas
e floresce onde menos esperam.
Horizontes da Razão
A mente não se prende
a muralhas nem tradições desgastadas.
Cada ideia é um rio que escapa,
uma luz que atravessa a escuridão.
A liberdade não se implora,
não se concede em decretos ou mandatos,
nasce do olhar que compreende,
do espírito que reconhece
a ordem do mundo
e a necessidade de agir.
Racionalidade e emoção
não são rivais,
mas asas gémeas
que aprendem a voar sobre o caos cotidiano.
Quem pensa por si descobre
que nenhuma divindade pode aprisionar a verdade,
e nenhum poder apagar
a dignidade de existir consciente.
Mesmo na solidão
ou no silêncio imposto,
o homem que se conhece
é mais vasto que qualquer trono,
mais profundo que qualquer texto
que tentou moldá-lo à servidão.
O Domínio das Paixões
Não são deuses que nos prendem,
nem decretos que ditam nosso destino,
somos nós, com desejos e medos,
que construímos vínculos invisíveis,
laços que parecem firmes, mas são frágeis.
Cada emoção, cada impulso,
é convite a compreender-se,
não a ceder sem consciência.
O ódio e o medo são mestres severos,
mas quando observados com clareza,
perdem força sobre nós.
A alegria surge, não como capricho,
mas como fruto da razão aplicada à vida.
Aprender a amar sem se perder,
agir sem se subjugar,
é perceber que cada passo
pode dissolver o jugo que criamos.
O homem livre não ignora o mundo;
transforma-se em instrumento do conhecimento,
e ao entender suas paixões,
descobre que o poder real
é harmonia consigo e com o todo.
Na simplicidade de cada gesto,
na atenção à própria essência,
o espírito se expande,
encontra força para existir pleno
mesmo em meio ao tumulto.
O Véu da Palavra
Não é Deus que exige,
mas homens que tomaram o nome para si.
Livros sagrados escritos com interesse próprio,
histórias transformadas em ferramentas,
profecias usadas como correntes para a mente.
O templo ergue-se alto,
não para guiar, mas para controlar.
Palavras ditas em voz grave
pesam mais que entendimento,
mais que a razão que poderia libertar.
A fé tornou-se máscara,
um véu que encobre ambição e medo.
O que parecia sagrado
revela-se construção humana:
regras, punições, limites inventados
para manter poder sobre o invisível.
Mas a verdade não se oculta completamente.
Cada espírito que questiona,
cada coração que observa,
descobre que a essência do divino
não precisa de tronos nem rituais,
não pede obediência,
apenas entendimento.
E nesse reconhecimento silencioso,
nasce a liberdade que nem impérios
nem templos conseguem aprisionar.
Potência Silenciosa
Cada gesto, cada escolha, cada pensamento
é fio de luz que atravessa a existência.
Não há bênção ou maldição capaz de impor
o que a razão e a natureza já definem.
A alegria não vem do acaso,
nem da promessa de recompensa,
surge da compreensão profunda:
do encontro consigo mesmo,
do alinhamento entre desejo e ação.
O poder não se conquista sobre outros,
mas se descobre dentro de si,
na clareza que transforma medo em força,
na consciência que ilumina o caminho.
O mundo é vasto,
mas cada ser carrega universos silenciosos.
Quem conhece a si mesmo
aprende que nada fora de si
tem poder sobre a essência.
E assim, passo a passo,
respeitando limites e impulsos,
descobrimos que viver plenamente
é o ato mais radical de liberdade,
o ápice de uma ética que nasce da razão e do amor.
Entre o Sagrado e o Poder
O templo ergue-se alto,
mas não aproxima o homem de si mesmo.
Textos antigos distorcidos, palavras retorcidas,
a fé transforma-se em corda que prende,
não em luz que liberta.
Promessas e medos confundem-se,
mandamentos ecoam mais como ordens
do que como ensinamentos.
O que deveria guiar a vida
serve apenas para controlar o espírito,
para medir e julgar desejos que nasceram livres.
Fora das paredes, entre árvores e rios,
no silêncio que não se impõe,
o divino se revela sem intercessor:
no sol que aquece a pele,
no vento que toca o rosto,
na alegria que surge sem culpa, sem ritual.
A espiritualidade não exige altar,
não se alimenta de medo,
é reconhecimento da ordem da natureza,
consciência da conexão entre tudo que vive.
Quem vê o mundo assim
aprende que ética e fé não precisam
de quem as corrompa para existir.
Passo a passo,
o homem descobre que ser devoto
é respeitar a vida, conhecer-se,
e amar a si mesmo e aos outros
com clareza que nenhuma igreja poderá dar.
Liberdade Interior
A mente busca poder sobre si mesma,
mas não encontra nas amarras da vontade alheia.
Cada emoção, cada desejo,
não é inimigo a domar,
mas energia a compreender.
A raiva não é vilã;
o medo não é prisão.
Reconhecê-los é traçar o mapa
que leva à própria liberdade.
O prazer verdadeiro nasce da clareza,
não do impulso cego,
e a tristeza revela profundidades
onde a razão pode mergulhar
e transformar sofrimento em compreensão.
Ninguém governa por nós
o mundo interior;
somos regentes de nossos afetos,
arquitetos da vida que escolhemos viver.
Entre o pensar e o sentir,
descobre-se que ética é autoconhecimento,
que a paz não é concessão externa,
mas fruto de compreender as paixões
e escolher, com consciência,
o que alimenta o espírito.
(Esta coleção de poemas "Evangelho da
Liberdade" nasce da inspiração na obra e no pensamento de Espinosa,
particularmente na forma como ele explorou a relação entre razão, liberdade e
as paixões humanas. Cada texto é uma reflexão poética sobre a busca da
autonomia interior, o questionamento das estruturas de poder e dogmas que
tentam controlar a vida, e a redescoberta da liberdade através do conhecimento
de si mesmo.
Os poemas não pretendem narrar histórias sagradas nem
ensinar doutrinas; procuram revelar o humano que habita em cada texto
histórico, cada tradição e cada experiência, destacando o fio luminoso da
razão, da ética e da consciência que atravessa os tempos.
Estes poemas é um convite a reconhecer suas próprias
paixões e medos, a compreender que a verdadeira liberdade não se impõe de fora,
mas nasce do entendimento interior e da coragem de agir com clareza e
responsabilidade. É uma homenagem à capacidade humana de transformar sofrimento
em consciência, confusão em discernimento, e impulso em ação consciente.
Em cada poema, a voz da razão e da vida tenta
sussurrar que, mesmo diante de opressões e mitos, a essência do ser não pode
ser aprisionada. A liberdade é um ato silencioso, um processo contínuo de
autoconhecimento e amor ético pelo mundo e por si mesmo.)
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